Nuevos Paradigmas de las Ciencias Sociales Latinoamericanas issn 2346-0377

vol. I, n.º 2, julio-diciembre 2010, Cleber da Silva y Andrei Koerner. pp. 7 a 42

Las tensiones entre la seguridad y los derechos civiles en Estados Unidos

después del 11 de septiembre*

Cleber da Silva Lopes**

Andrei Koerner***

 

mn

 

Tensions between security and civil rights

in the United States after September 11

 

Resumen

 

El trabajo estudia las tensiones que se presentan entre las políticas de seguridad los derechos civiles de la población que son parte de cualquier democracia. Analiza las tensiones producidas por las políticas de seguridad adoptadas por Estados Unidos después de los atentados del 11 de septiembre.

 

Palabras clave: Políticas de seguridad; Derechos civiles; Atentados terroristas del 11 de septiembre.

 

Abstract

 

Here the author studies the tensions between security policies and civil rights, which are part of any democracy. Analyzes the tensions produced for the security policies adopted by United States after September 11.

 

Keywords: Security policies, Civil Rights, Terrorism, September 11.

 

Fecha de presentación: 15 de agosto de 2010. Revisión: 22 de octubre 2010. Fecha de aceptación: 6 de diciembre de 2010.

 

ef

 

As tensões entre as instituições e políticas de segurança pública e os direitos civis da população é parte constitutiva da dinâmica política de qualquer democracia. Essas tensões podem se manifestar de diversas maneiras: quando a polícia age brutalmente e/ou discrimina sistematicamente grupos de cidadãos; quando a polícia é usada politicamente para promover espionagem ou ações contra grupos políticos opositores; quando crises de segurança eclodem, levando o governo a adotar medidas restritivas das liberdades e garantias individuais (estados de sítio, exceção), etc. Os conflitos entre as instituições e políticas de segurança pública e os direitos civis estão presentes na história americana sob essas diversas formas, como mostra o cinema, a literatura e a bibliografia acadêmica sobre organizações policiais e organizações do setor de inteligência. Esses conflitos reapareceram com força na sociedade americana com as políticas de combate ao terrorismo levadas a cabo após os atentados contra o Pentágono e o World Trade Center, em 2001. Sobre esses conflitos recentes já se acumula uma produção acadêmica relativamente extensa, mas pouco conhecida no Brasil.

Este artigo explora a literatura acadêmica que tratou das tensões que eclodiram com as políticas de segurança antiterror adotadas pelos eua após os atentados de 11 de setembro. O objetivo é mapear e sistematizar parte da bibliografia acadêmica que abordou as tensões entre os direitos civis e as políticas de segurança dos dois governos do presidente George W. Bush. A revisão da literatura não é feita de forma exaustiva, mas de forma parcial e com a intenção de oferecer ao leitor uma visão geral dos debates que apareceram no período pós 11 de setembro em função das políticas de segurança adotadas pela administração Bush.

Trabalhos de quatro tipos foram identificados: os que defendem radicalmente um dos lados da tensão entre segurança e direitos civis; os que abordam o tema do ponto de vista das policies; os que analisam o problema de uma perspectiva constitucional; e os que tentam lançar um olhar mais positivista e analítico sobre as relações entre segurança e direitos civis nos eua pós 11 de setembro. As seções que seguem procuram descrever trabalhos representativos dessas quatro linhas de análises produzidas durante o governo Bush. Começo por debater alguns dos trabalhos que Tushnet (2005) chamou de estudos de “primeira geração”, marcados pela polarização entre os que viam em praticamente toda a ação da administração Bush um sinal de restrição das liberdades individuais (chamados pelo autor de alarmistas) e os que viam as ações dessa administração como prudentes e adequadas aos novos desafios postos à segurança nacional (os complacentes).

 

Alarmistas x complacentes

Uma primeira linha de interpretação sobre as políticas de segurança implementadas pelos eua após os atentados de 11 de setembro reflete uma polarização ideológica existente na sociedade americana entre defensores das liberdades individuais e defensores do poder executivo forte e atuante na área de segurança. Parte das interpretações contidas nas obras editadas logo após os atentados de 11 de setembro refletiram essas posições políticas. Libertários que já desconfiavam das intenções de Bush na área de segurança interna passaram a encarar suas ações como mais um exemplo de sua insensibilidade em relação aos direitos civis (Brown, 2003; Chang, 2003; e Leone, 2003). Já os defensores de um executivo forte aproveitaram a janela de oportunidade que se abriu após os ataques terroristas para defender suas teses junto ao governo e à sociedade (Ashcroft, 2005; e Yoo, 2005 e 2006).

Num texto que é a transcrição de um discurso proferido em 2003, Ashcroft (2005), então procurador geral dos eua1, faz uma defesa entusiasmada do Patriot Act, lei que ajudou a criar e da qual foi um dos principais defensores2. A partir de uma citação de Thomas Jefferson, Ashcroft sustenta que a primeira responsabilidade de um governo é preservar a vida e a liberdade das pessoas. Considerando essa função primordial, o autor/ator defende que o Patriot Act foi uma peça chave para melhorar as ferramentas necessárias para um desempenho governamental adequado na área de segurança. A defesa do Patriot Act é feita com base em três argumentos: i) ele permitiu que as autoridades combatessem o terrorismo por meio de instrumentos já aprovados por cortes e que vinham sendo utilizados com sucesso no combate às drogas, fraudes e crime organizado; ii) adequou as leis para que fizessem frente ao avanço das tecnologias de informação que se desenvolveram rapidamente nas últimas décadas, dificultando a investigação de pessoas mal intencionadas que fazem uso de tais tecnologias; e iii) expandiu a capacidade das agências de execução de lei para cooperar e compartilhar informações, melhorando a capacidade do governo para prevenir ataques.

Outro ator governamental que se posicionou no debate acadêmico em defesa do executivo e das políticas de segurança da administração Bush foi John Yoo (2005). Como assessor jurídico do Departamento de Justiça, Yoo foi o mentor intelectual dos argumentos legais que embasaram a guerra ao terror. O pano de fundo das revindicações de que o executivo poderia conduzir a guerra ao terror sem levar em consideração tratados internacionais e com poderes ilimitados encontra-se exposto no livro The powers of war and peace: the constitution and foreign affairs after 9/11, que propõe uma interpretação dos dispositivos constitucionais na área de relações externas radicalmente a favor do executivo.

A interpretação de Yoo é construída a partir de uma análise da estrutura constitucional, do texto constitucional e da história do executivo americano. Yoo defende que a Constituição americana não definiu um método correto ou singular para decidir sobre a guerra e sobre acordos e leis internacionais, permitindo aos poderes cooperar ou competir de acordo com suas prerrogativas em matéria de política externa. E nessa matéria Yoo defende a tese de que o texto constitucional revestiu o executivo de toda a autoridade, deixando ao legislativo apenas a capacidade de exercer check por meio da negativa de fundos orçamentários para projetos do executivo. Para sustentar essa tese, Yoo procura identificar a intenção original dos fundadores que ratificaram a Constituição americana. Segundo ele, os fundadores desenharam o sistema constitucional americano de acordo com o modelo britânico vigente na época, que reservava a um executivo forte e unitário a competência para decidir e agir sobre assuntos externos, mas assegurava ao legislativo a capacidade de dar a última palavra sobre o financiamento das ações executivas. Nesse modelo, as declarações de guerra por parte do legislativo foram previstas como declarações legalistas primordiais para que uma variedade de relações jurídicas pudessem se estabelecer durante o período de hostilidade entre as nações, e não como uma autorização para fazer a guerra. Tendo isso em conta, Yoo adverte que o artigo primeiro da Constituição dos eua não deve ser interpretado como um dispositivo que condiciona a capacidade do presidente fazer guerra à uma declaração formal do Congresso3. O único check disponível ao Congresso nessa área seria negar recursos destinados a sustentar intervenções militares.

É com base nesse teoria constitucional flexível, pragmática e que reivindica a supremacia do poder executivo em assuntos externos que Yoo pensa os problemas levantados pela guerra ao terror. Para ele, a guerra atual é diferente das guerras anteriores e exige ações na área de segurança tão duras quanto as inicialmente adotadas pelo presidente Bush, que teria agido legalmente ao declarar guerra ao terrorismo e ter se negado a observar tratados como a Convenção contra a Tortura e a iii Convenção de Genebra. Por sustentar esses pontos vista e pela sua posição chave dentro do poder executivo, Yoo é considerado o grande porta voz da corrente que Tushnet chamou de “complacente”.

Os argumentos defendidos por Ashcroft e Yoo foram veementemente repelidos por autores situados do outro lado do espectro político, caso de Brown (2003), Chang (2003) e Leone (2003). Chang pode ser considerada representativa desse grupo, chamado por Tushnet de “alarmistas”. A autora foi uma das primeiras a explorar sistematicamente o impacto das políticas de segurança do governo Bush sobre os direitos civis. Chang defende dois pontos de vista. O primeiro é o de que as várias medidas antiterror adotadas pelo governo Bush afetaram as liberdades civis de maneira negativa: prisões foram efetuadas sem a observação do devido processo legal e de forma discriminatória, mudanças legislativas permitiram ao governo processar grupos políticos e dissidentes por suposto envolvimento em atividades terroristas e ampliaram a capacidade de vigilância e intrusão do Estado na vida das pessoas.

O segundo ponto de vista defendido por Chang, complementar ao primeiro, é o de que, embora essas medidas tenham impactado negativamente os direitos civis nos eua, dificilmente elas poderiam resultar em maior segurança. Para a autora, as medidas de segurança adotadas logo após os atentados poderiam trazer mais insegurança. Isso porque, como o próprio governo teria reconhecido, os atentados ocorreram não pela falta de poderes adequados por parte das agências de execução da lei, mas pela incapacidade dessas agências perceberem os sinais de alerta que foram transmitidos, fato que estaria relacionado à sobrecarga de informações existentes, ausência de tradutores treinados e falhas de comunicação entre as agências. Nesse sentido, Chang defende que a reorganização do Federal Bureau Investigation (fbi) e o afrouxamento das regras para a obtenção de informações a partir de atividades de inteligência doméstica provavelmente resultariam numa maior sobrecarga de informações, rebaixando a qualidade das ações de segurança. Mais agentes perseguiriam mais pistas falsas e mais tempo, energia e atenção seriam desviadas de informações que não poderiam ser perdidas, deteriorando assim a capacidade do governo de prevenir atentados contra os eua.

Como é possível notar no trabalho de Chang, a perspectiva alarmista defende posições radicalmente contrárias às políticas de segurança da administração Bush. Chang, por exemplo, não reconhece nos acontecimentos de 11 de setembro algo que justificaria mudanças legais e institucionais profundas na forma como a segurança era conduzida nos eua. Contrariando Yoo e Ashcroft, que defenderam como condição para uma maior eficiência no combate ao terrorismo alterações profundas na área de segurança interna, Chang considera que tais mudanças foram, na verdade, contraproducentes, além de terem afetado direitos civis de forma inadmissível. Foi nesses termos, sem concordar quanto à necessidade de novas políticas de segurança ou sobre o seu impacto sobre os direitos civis, que alarmistas e complacentes interpretaram as primeiras políticas de segurança da administração Bush

 

Analisando e melhorando as

políticas de segurança

 

Um segundo conjunto de trabalhos que emergiu no pós 11 de setembro pode ser lido nas publicações preocupadas em disputar a direção e o formato das políticas de segurança pública da administração Bush. Muitas dessas publicações são relatórios patrocinados por think tanks e outras instituições interessadas em pautar mais concretamente o debate público do pós 11 de setembro. Esses trabalhos procuram diagnosticar as políticas de segurança do ponto de vista da sua eficiência e aderência aos princípios constitucionais estadunidenses para, a partir daí, propor políticas alternativas. Este é o caso das análises de Schulhofer (2002), Crishti et. al. (2003) e Heymann (2005).

O livro de Stephen Schulhofer (2002) é o resultado de um relatório produzido para o The Center Foundation4. Nele o autor considera que os atentados de 11 de setembro colocaram ameaças sérias à segurança dos eua, tornando compreensível medidas de segurança tomadas às pressas e sem escrutínio público. Todavia, o autor ressalva que isso não poderia se tornar permanente e que as políticas de segurança dos eua deveriam ser avaliadas tendo como parâmetro as características centrais da estrutura política do país: separação de poderes, check and balances e o mais alto grau possível de discussão e debate público. Partindo dessa premissa, Schulhofer procura avaliar as políticas de segurança do pós 11 de setembro preocupado, de um lado, com o seu impacto sobre os direitos e liberdades civis, e, de outro lado, com sua eficiência.

Segundo Schulhofer, as políticas de segurança implementadas logo após os atentados de 11 de setembro apresentaram problemas de três tipos: compromissos ruins, oportunismo e poder executivo sem checks and balances. O primeiro tipo de problema teria ocorrido com leis e políticas que restringiram as liberdades civis em troca de ganhos limitados ou duvidosos para a segurança. O segundo ocorreu com a inclusão oportunista de poderes de investigação em pacotes legislativos antiterrorismo com o intuito de evitar as objeções que essas propostas enfrentariam caso fossem vinculadas a projetos de lei relacionados ao combate da criminalidade comum. Por fim, os problemas de checks and balances vieram a tona quando o executivo obstruiu a possibilidade de revisão e accountability em várias políticas: nas detenções de americanos e estrangeiros por tempo indeterminado e sem aprovação judicial; no sigilo sobre as audiências de detenção e sobre a identidade dos presos; no isolamento a que alguns presos foram submetidos ao serem proibidos de se comunicar com advogados, familiares e ter acesso às cortes; e no uso de novos poderes para realizar vigilância intrusiva com pouca ou nenhuma supervisão judicial.

A partir da identificação e caracterização desses problemas, Schulhofer sugeriu 10 recomendações genéricas para contornar os problemas identificados por ele nas políticas de segurança analisadas, dentre as quais a retirada dos obstáculos ao funcionamento dos checks and balances, a limitação do uso dos novos poderes somente contra os crimes de terrorismo, o renquadramento das atividades de inteligência ao padrão fisa, a criação de uma comissão independe para investigar as causas dos atentados de 11 de setembro e para propor alternativas, etc. Vale notar que muitas das medidas criticadas por Schulhofer não foram alteradas e sim consolidadas com a atualização do Patriot Act, em 20065. A sugestão de criar uma comissão independente para investigar as causas dos atentados, por outro lado, foi levada adiante pelo presidente George W. Bush. Conhecida como 9-11 Commission, a Comissão entregou seu relatório final em julho de 2004, encerrando os trabalhos um mês depois6.

Outro trabalho que se insere na perspectiva das policies é o relatório de pesquisa assinado por Crishti et. al. (2003) e apoiado pelo Migration Policy Institute (mpi)7 com o propósito explícito de construir recomendações nas quais as políticas de segurança e as liberdades civis apareçam como complementares e não como competitivas. Segundo Crishti et. al. (2003), as políticas adotadas pelos eua na área de imigração nos 18 meses que se seguiram aos atentados de 11 de setembro fracassaram em três aspectos: não tornaram o país mais seguro, violaram liberdades civis fundamentais e minaram a unidade nacional.

Para Crishti et. al. (2003), a política de segurança empreendida pelo governo Bush atribuiu, equivocadamente, importância central ao sistema de imigração. O governo americano teria repetido o padrão histórico de usar seletivamente as políticas de imigração para atingir não cidadãos de nacionalidades e etnias específicas com o pretexto de proteger a segurança nacional. Contudo, o uso do sistema de imigração não teria produzido resultados substantivos em termos de redução das ameaças terroristas. Isso porque, na avaliação de Crishti, o sistema de imigração tem eficácia antiterrorista limitada quando comparado às ações de inteligência internacional, cooperação policial e informações fornecidas por detenções efetuadas no estrangeiro. Como o autor mostra, a grande maioria dos cidadãos presos por iniciativas de imigração não o foram por suspeitas de terrorismo e sim por crimes comuns ou violações rotineiras de leis de imigração.

Além de ineficaz, o uso do sistema de imigração no combate ao terrorismo impôs dois custos aos eua: ameaçou as liberdades civis e erodiu a unidade nacional. Violações dos direitos civis ocorreram com as prisões de estrangeiros, que foram encarcerados sem acusações formais, com o direito à assistência jurídica e à comunicação com familiares na prática negados, além de terem sido submetidos a audiências fechadas. O governo também teria violado a Constituição ao usar a origem nacional como proxy da evidência de periculosidade –ao invés da suspeita individualizada– para orientar algumas de suas políticas governamentais e ao se empenhar em ocultar a quantidade, a identidade e o paradeiro dos detidos de origem árabe e muçulmana. Essas práticas, segundo Crishti et. al. (2003), danificariam o tecido social dos eua e a identidade do país como nação de imigrantes, contribuindo para o aprofundamento da percepção de que os eua é um país anti-islã e que seus princípios são hipócritas. O aprofundamento dessa percepção poderia, ao invés de produzir mais segurança, tornar o país ainda mais vulnerável ao terrorismo.

Como alternativa às políticas até então empreendidas, Crishti et. al. (2003) sugeriu que o governo melhorasse sua capacidade de inteligência e de troca de informação de modo a permitir que o sistema de imigração trabalhasse articulado com os demais sistemas de segurança. Para proteger a segurança do transporte aéreo, terrestre e marítimo nas fronteiras, o autor sugeriu também que o governo adotasse políticas baseadas na administração de riscos. Salvaguardas para assegurar o cumprimento do devido processo legal para pessoas detidas por violações de leis de imigração também foram defendidas pelo autor. Crishti et. al. (2003) propôs ainda que o governo realizasse esforços para engajar as comunidades árabes e muçulmanas no combate ao terrorismo, para o que seria necessário cultivar novas relações e construir elos de confiança com essas comunidades.

Outro trabalho desenvolvido com o objetivo geral de oferecer recomendações práticas para que as políticas governamentais do pós 11 de setembro compatibilizassem segurança e direitos civis é o trabalho de Heymann e Kayymem (2005). Assim como os trabalhos de Schulhofer (2002) e Crishti et. al. (2003), o de Heymann e Kayymem é originalmente um relatório de recomendações produzido junto a um projeto independente, desenvolvido na Universidade de Harvard, que ouviu dezenas de especialistas norte americanos de diversos matizes político-ideológicas8. Concebendo as relações entre segurança e direitos civis como um trade-off, Heymann e Kayymem reconheceram que não seria possível minimizar o risco de ataques terrorista e maximizar as proteções das liberdades individuais no limite ideal, mas seria viável prever e regular noventa por cento de tudo o que preocupa em cada lado da relação. Definir regras sobre temas polêmicos (interrogatórios coercitivos, detenções indefinidas, comissões militares, assassinato de alvos, interceptações de comunicações, Coleta de informações e vigilância de religiões e encontros públicos) seria algo fundamental para evitar tanto abusos quanto supercorreções que normalmente ocorrem quando desvios vêem a tona, interferindo na eficácia dos agentes estatais que combatem o terrorismo. Para atingir esse duplo objetivo de evitar/controlar abusos e garantir eficiência no combate ao terrorismo, os autores defenderam a existência de regras claras, inequívocas e que levassem em conta três importantes critérios: “accountability” de modo a garantir revisão judicial e legislativa dos poderes reivindicados e mobilizados pelo executivo; “transparência” para permitir o debate público sobre as políticas de segurança dos eua e a supervisão dos demais poderes e da sociedade sobre tais políticas; e “reavaliações precisas”, que deveriam definir medidas revogáveis (sunset provisions) para novos poderes executivos amplos e que não poderiam sobreviver por mais tempo do que um período excepcional que os justificassem.

A fim de delimitar uma estratégia legal válida no longo prazo, Heymann e Kayymem defenderam uma linha racional que definisse os indivíduos e a localização das atividades abrangidas pelas regras por eles defendidas, bem como “zonas de combate ativo” onde tais regras dariam lugar às normas de guerra. Assim, os autores defenderam que os eua deveriam cumprir os tratados que proíbem tortura (sem exceções), que qualquer cidadão americano ou estrangeiro detido nos eua seria mantido preso sob acusação criminal, que demandas não judiciais como a Nacional Security Letter seriam mantidas em segredo e válidas por apenas 60 dias, etc9.

Todos os três trabalhos discutidos acima rejeitam interpretações extremas e preocupadas apenas com um dos lados do debate segurança x liberdades. Os trabalhos ligados a think tanks reconhecem a necessidade de políticas de segurança alternativas para fazer frente às ameaças representadas pelo terrorismo fundamentalista, mas rejeitam que tais ameaças justifiquem violações do devido processo legal e uma grande mudança na balança histórica que equilibra os poderes executivo, legislativo e judiciário nos eua. Assim, ao invés de se imbuir de uma perspectiva justificadora ou negadora das políticas de segurança levadas a cabo após os atentados de 11 de setembro, os trabalhos que adotaram a perspectiva das policies procuram, a partir das análises empreendidas, oferecer alternativas para que os policy makers implementem políticas igualmente comprometidas com o propósito de garantir segurança e respeito aos direitos humanos e demais princípios estruturadores das instituições norte americanas: divisão de poderes com checks and balances, devido processo legal e transparência pública nas ações governamentais.

 

O debate constitucional

Paralelamente aos trabalhos discutidos acima, um terceiro conjunto de estudos que surgiu na sociedade americana após os ataques de 11 de setembro é formada por trabalhos que exploram as tensões entre direitos civis e políticas de segurança do ponto de vista da Constituição americana. Uma parte desses trabalhos discutiu o significado e o legado constitucional da guerra ao terror declarada pelo presidente George W. Bush (Pfiffner, 2005; e Cole & Dempsey, 2005). Outra parte dedicou-se a entender o problema mais amplo da constituição e dos direitos civis em tempos de crise. À luz das várias medidas polêmicas adotadas durante o governo Bush, alguns autores voltaram-se deliberadamente para propor modelos constitucionais que permitissem aos governos responder às ameaças terroristas com eficiência e respeito aos direitos civis (Gross, 2003 e 2005; Dyzenhaus, 2005; e Ackerman, 2006), enquanto outros optaram por abordagens mais historicistas e analíticas sobre as ações do executivo (Luban, 2005; e Graber, 2005) e do judiciário em tempos de guerra.

 

Abordagens normativas sobre a administração Bush

Dois trabalhos centrais e representativos do debate constitucional sobre as respostas governamentais aos atentados de 11 de setembro podem ser lidos nos livros de Pfiffner (2005) e de Cole e Dempsey (2005), que lançaram mão de uma perspectiva normativa para descrever e analisar o impacto da administração Bush sobre duas dimensões inter relacionadas: o equilíbrio entre os poderes (Pfiffner, 2005) e as garantias legais relativas aos direitos civis.

Pfiffner (2008) procurou analisar o governo do presidente George W. Bush do ponto de vista do seu impacto sobre o império da lei e sobre o equilíbrio entre os poderes constitucionais. O autor parte de uma interpretação da Constituição e do poder executivo que é diametralmente oposta a interpretação de Yoo (2005). Segundo Pfiffner, diante da experiência inglesa, que sofreu com o domínio do executivo, os fundadores escreveram uma Constituição que repartiu o poder em três ramificações de modo a evitar que uma se sobrepusesse a outra. Ao conceber essa divisão, os poderes de fazer a guerra teriam sido compartilhados entre legislativo e executivo e foram submetidos aos constrangimentos constitucionais. Assim, diferentemente da interpretação de Yoo sobre a Constituição e a divisão dos poderes nos eua, que favorece a visão de que o presidente Bush agiu legalmente na guerra contra o terror, Pfiffner realiza uma interpretação da constituição que conduz à conclusão de que as ações do presidente Bush perturbaram a divisão dos poderes e feriram o espírito da lei suprema dos eua.

Para Pfiffner, o presidente George W. Bush e o vice-presidente Dick Cheney entendiam, mesmo antes dos atentados de 11 de setembro, que a reação legislativa ao “presidencialismo imperial” dos presidentes Johnson e Nixon tinha ido longe demais e desequilibrado a balança dos poderes em favor do Congresso. Para eles, esse desequilíbrio constrangia a capacidade do Executivo responder aos desafios enfrentados pelos eua na área de segurança. Os atentados de 11 de setembro teriam aberto a oportunidade para que a balança fosse alterada em favor do executivo. A administração Bush aproveitou a oportunidade e trabalhou consciente e sistematicamente para tornar o executivo mais independente dos outros dois poderes. As manifestações concretas dessas reivindicações de independência, segundo o autor, podem ser vistas em quatro ações polêmicas da administração Bush: a negação do direito a habeas corpus para os presos detidos como combates inimigos em Guantánamo; a suspensão da iii Convenção de Genebra e a permissão e encorajamento de métodos de interrogatórios duros e por muitos considerados como tortura; a autorização para que a National Security Agency (nsa) realizasse escutas, sem mandado judicial, de cidadãos americanos suspeitos de se comunicar com terroristas; e os questionamentos presidenciais de constitucionalidade, que declararam que o presidente tinha a opção de não cumprir partes de leis que conflitavam com sua autoridade.

Essas quatro ações da administração Bush, levadas a cabo sob o argumento de que sua autoridade constitucional como presidente o isentava de obedecer a certas disposições legais, teriam violado o império da lei e comprometido a estrutura constitucional de divisão de poderes criada pelos fundadores da república estadunidense. Segundo Pfiffner, o legislativo e, especialmente o judiciário, reagiram às manifestações de unilateralismo do executivo, mas a reação não teria sido capaz de obstaculizar as investidas do governo no primeiro mandato do presidente George W. Bush10. Em relação ao legislativo, em particular, Pfiffner considera que a aprovação do Patriot Act e, especialmente, do Military Commission Military Act (mca) não deve ser vista simplesmente como um sinal de que o sistema constitucional funcionou a favor de um presidente que reivindicou para si poderes extraordinários. Do ponto de vista constitucional, o problema que teria permanecido é o de que a reivindicação do direito de organizar comissões militares sem a autorização do Congresso, sustentada por Bush antes da aprovação do mca, pode ser usada como argumento para que outros presidentes reivindiquem autoridade extraordinária em momentos futuros de ameaça à segurança. Assim, segundo Pfiffner, o prejuízo que a administração Bush impôs ao equilíbrio dos poderes e ao império da lei poderia ter consequências duradouras.

Uma análise das políticas de segurança da administração Bush também centrada na Constituição, mas mais preocupada com as consequências para as liberdades civis, pode ser lida no estudo de Cole e Dempsey (2005), que exploraram o modo como o governo americano equilibrou, no contexto pós 11 de setembro, a necessidade de segurança com o dever de respeitar direitos civis. Segundo os autores, as respostas governamentais às ameaças terroristas deveriam ser analisadas com base em três princípios normativos. Primeiro, o governo não deveria incorrer nos mesmos erros que governos passados cometeram ao lidar com crises de segurança. Segundo, o combate ao terrorismo não deveria sacrificar seletivamente as liberdades de minorias étnicas em nome da segurança das maiorias. Por fim, as políticas antiterroristas não deveriam admitir infrações àqueles que seriam os alicerces fundadores da democracia constitucional americana: liberdade política, devido processo, accountability, transparência governamental, privacidade individual e igualdade de tratamento.

Ao analisar as respostas governamentais aos ataques terroristas de 11 de setembro a partir dos princípios normativos apontados acima, Cole e Dempsey consideram que elas falharam em todos os três critérios: incorreram em muitos dos mesmos erros cometidos no passado; transformaram minorias étnicas em alvos privilegiados do sistema de justiça criminal não por causa de condutas ilegais, mas por causa do seu discurso, atividade política ou identidade grupal; lançaram mão de varreduras amplas em bases de dados públicas e privadas ao invés de realizar investigações baseadas em suspeitas individualizadas de irregularidades; e ignoraram as salvaguardas do devido processo legal em relação aos detidos na guerra ao terror com base em poderes unilaterais e não passíveis de checks.

Cole e Dempsey consideram que, a despeito da retórica de tempos de guerra utilizada pelo presidente George W. Bush, a ameaça terrorista nunca será eliminada. Nesse sentido, o desafio colocado para a sociedade americana não seria o de vencer uma guerra que não teria fim, mas sim dar respostas equilibradas às ameaças terroristas, ou seja, respostas eficientes e que respeitem os princípios fundamentais que caracterizam a identidade dos eua enquanto nação. Para isso, os autores sustentaram a idéia presente em muitos trabalhos de que um dos maiores trunfos dos eua na luta contra o terror residiria justamente no seu sistema político democrático liberal, capaz de ouvir as preocupações de dissidentes sem que esses necessitem recorrer à violência. Para os autores, o melhor caminho para combater o terrorismo seria então aderir aos princípios liberais que fundamentam a idéia de que o governo deve ser controlado, usar as leis criminais para punir aqueles que planejam ou executam atos violentos (ao invés de ações gerais contra pessoas suspeitas por sua identidade étnica, religiosa ou ideológica) e convidar os críticos do governo a praticar a democracia e a tolerância.

 

Abordagens propositivas sobre a

Constituição em tempos de guerra

Do lado propositivo estão os trabalhos de Gross (2003 e 2005), Dyzenhaus (2005) e Ackerman (2006), que giram em torno do seguinte problema: em que medida o império da lei pode e deve ser conservado em momentos de grave crise que precisam ser debeladas? Gross (2003) e Dyzenhaus (2005) travaram um interessante debate a partir de diferentes interpretações e ênfases da obra de Albert Venn Dicey, jurista e constitucionalista britânico autor de An Introduction to the Study of the Law of the Constitution (1885). Gross (2003 e 2005) defende um “modelo de medidas extralegais” como forma de garantir os princípios constitucionais fundamentais e os poderes necessários para que o governo proteja a sociedade numa situação de emergência. A defesa do modelo é feita com base na suposição de que, em momentos de emergência ou crise aguda, o executivo poderá ser impelido a agir de forma ilegal ou extraconstitucional para proteger a nação e a sociedade. Nessas circunstâncias, a conduta do executivo não poderia ser julgada segundo os padrões constitucionais vigentes, mas deveria estar sujeita a ratificações democráticas a posteriori.

O modelo de medidas extralegais proposto por Gross contém três componentes: desobediência oficial, divulgação e ratificações ex-post. A desobediência consiste na decisão discricionária da autoridade pública de se desviar de uma norma jurídica para lidar com uma situação excepcional. A norma desrespeitada continuaria válida para outras situações e também para o caso concreto. Desobediência oficial, explica Gross, não significa cancelamento ou suspensão da norma, mas sim descumprimento da mesma. Para que o modelo funcione, o autor defende que o descumprimento da norma deve ser divulgado de modo a permitir avaliações da sociedade sobre o ocorrido. É a sociedade quem deteria o poder de decidir se a autoridade pública deverá ser punida ou elogiada por suas ações. Assim, caberia ao legislativo decidir pela concessão ou não de Atos de Isenção Legal que referendassem as ações do executivo. Até que a ação extralegal seja ratificada ex-post, a autoridade não saberá qual a conseqüência pessoal de se ter violado uma determinada lei. Assim, defende Gross, o modelo permitiria que as autoridades públicas agissem diante de situações de emergência com a flexibilidade, agilidade e os poderes necessários para proteger a sociedade. Ao mesmo tempo, as avaliações ex post assegurariam que tais autoridades seriam responsabilizadas democraticamente por eventuais violações de direitos civis decorrentes de suas ações.

Esse sofisticado argumento em defesa de medidas extralegais foi criticado por Dyzenhaus (2005), que faz uma leitura da obra de Dicey diferente da feita por Gross. Para Dyzenhaus, o modelo legal preferido por Dicey em situações de emergência não é o modelo segundo qual o Legislativo pode referendar ações ilegais do executivo a posteriori, e sim um modelo no qual o Legislativo concede antecipadamente recursos legais para que o executivo trate uma situação de emergência de acordo com o império da lei. Com base nessa interpretação da obra de Dicey, o autor propõe um “modelo de legalidade” acordado. Por esse modelo, os governantes deveriam se adaptar, em tempos de emergência, às novas circunstâncias através da criação de instituições desenhadas de modo a contemplar a competência necessária para rever decisões de segurança nacional. Enquanto essas instituições podem não se conformar estritamente a concepções formais de separação de poderes, elas poderiam preservar a legalidade se fossem concebidas de modo tal que permanecessem sensíveis às circunstâncias especiais de terrorismo que podem afetar a segurança dos eua.

Uma tese constitucional menos teórica e mais inserida no contexto dos debates sobre segurança e liberdades civis dos eua pós 11 de setembro foi defendida por Ackerman (2006). A preocupação central de Ackerman é com as consequências que ataques futuros podem trazer para as liberdades civis. Segundo o autor, o 11 de setembro deixou claro que o clima de terror e pânico gerado por um grande ataque terrorista cria condições para superreações governamentais que são ameaçadoras das liberdades civis. O remédio constitucional presente no sistema político americano para evitar superreações desse tipo são as cortes, mas Ackerman considera que historicamente elas nunca desempenharam esse papel a contento e provavelmente não o farão no futuro. Para impedir que um ciclo patológico de terror-ameaça-repressão traga consequências perversas para as liberdades individuais, Ackerman defende que os eua tenham uma “constituição de emergência” que permita medidas capazes de evitar um segundo ataque no curto prazo, mas que também estabeleça regras firmes de modo a evitar que os políticos explorem o momento de pânico e imponham restrições de longo prazo às liberdades civis.

Para Ackerman, nem guerra nem crime captariam os desafios que ataques terroristas de grande escala colocam para os eua. O autor sustenta que essa falsa dicotomia guerra-crime deva ser substituída por uma tricotomia que dê proeminência à noção de “estado de emergência”. Numa situação de emergência medidas extraordinárias são necessárias, mas estas devem ser definidas racionalmente num documento legal (uma “constituição de emergência”) que defina o escopo e a duração dos poderes que podem ser mobilizados para a normalização da situação. Segundo Ackerman, esse documento legal deveria conter um sistema de checks and balances adequado aos desafios de segurança que os eua enfrentarão no século xxi. Nesse sentido, primeiro e antes de tudo, a constituição de emergência deveria impor limites estreitos ao poder presidencial unilateral. Presidentes não deveriam ter o poder de declarar uma emergência por si só, exceto pelo período necessário para que o Congresso analisasse o assunto (uma ou duas semanas). A constituição também deveria prever que poderes emergenciais como o de prender pessoas sem levar em consideração o devido processo legal caducariam automaticamente caso não fossem aprovados por tempo pré-determinado por maiorias escalonadas em ambas as casas - maioria simples para a primeira autorização, supermaioria de 60% para a autorização seguinte, e assim por diante. Com esse procedimento, Ackerman acredita que o uso de poderes emergenciais seria restringido a períodos realmente necessários e relativamente curtos, preservando assim liberdades individuais que poderiam ser ameaçadas caso alterações legais fossem introduzidas nas leis penais americanas.

 

Abordagens historicistas e explicativas

sobre a Constituição em tempos de guerra

Distanciando-se dos trabalhos mais teóricos e propositivos, outros autores procuraram analisar e explicar o modo como a atuação do judiciário (Issacharo e Pildes, 2005) e do executivo (Lobel, 2005; e Graber, 2005) impactam os direitos civis em tempos de crise.

Issacharo e Pildes (2005) procuram entender o modo como a Suprema Corte dos eua tem se comportado nos momentos de crise, quando ameaças à segurança nacional eclodem e provocam tensões entre os esforços do executivo para obter segurança e os direitos civis da população. Ao analisar diversos momentos da história americana em que demandas por segurança e valores liberais entraram em conflito, levando a Suprema Corte a se manifestar, os autores notaram que os magistrados têm se mostrado relutantes em referendar tanto as reivindicações de autoridade unilateral do executivo quanto as demandas dos libertários para que direitos civis sejam protegidos mesmo em tempos de crise. Ao invés de decisões favoráveis a um ou outro lado do conflito, os autores encontraram que as cortes têm preferido deslocar a responsabilidade sobre decisões difíceis para os poderes democráticos: o executivo e o legislativo. Quando o poder executivo implementa políticas de segurança restritivas das liberdades individuais com a autorização expressa ou tácita do Congresso, a Suprema Corte tende a referendar as ações do executivo. Por outro lado, quando o presidente age por conta própria ou sem autorização legislativa, a Suprema Corte tende a invalidar suas ações. O resultado dessa abordagem é um padrão de decisão no qual a Suprema Corte não endossa nem a autoridade executiva unilateral durante tempos de crise, nem assume para si o papel de definir diretamente as disputas substantivas por direitos.

Segundo Issacharo e Pildes, esse padrão histórico de atuação da Suprema Corte reemergiu no pós 11 de setembro nas disputas em torno do direito e do status dos presos de Guantánamo. Essa reemergência não deixa de ser surpreendente, pois a abordagem baseada em direitos ganhou importância a partir dos anos 60 entre filósofos do direito e teóricos constitucionalistas, ao passo que a abordagem baseada em processo chegou à década de 80 sob intensa crítica intelectual. A despeito das críticas acadêmicas, os autores argumentam que a aproximação baseada em processo tem exercido grande influencia sobre a Suprema Corte, particularmente nos momentos de crise. A explicação para isso, segundo Issacharo e Pildes, poder estar no próprio desenho institucional do sistema político estadunidense. Os tribunais americanos atuam dentro de um sistema de poderes em que o legislativo e o executivo estão divididos e separados a invés de integrados de forma orgânica, como ocorre nos sistemas parlamentaristas11. Quando as cortes americanas enfatizam a importância da aprovação institucional de ambos os poderes políticos em temas polêmicos da área de segurança, elas o fazem por que podem confiar em dois atores que possuem diferentes linhagens democráticas, diferentes incentivos e diferentes interesses.

Deslocando o olhar do judiciário para o executivo, outros autores também lançaram mão de análises historicistas para contextualizar (Lobel, 2005) e explicar (Graber, 2005) a atuação do executivo em tempos de crise e o seu impacto sobre os direitos civis.

O trabalho de Jules Lobel procura criticar uma idéia recorrente no debate sobre liberdade e segurança: a idéia de que em tempos de guerra ou emergência as leis se calam, que assume como pressuposto que guerra/emergência é um evento distinto e passageiro que logo dá lugar à normalidade com plena vigência das leis. Segundo Lobel, os fundadores da república estadunidense assumiram que a paz seria o estado normal do país, ao passo que guerras e situações de emergência seriam aberrações. Lobel considera que as guerras do século xx −especialmente a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria− desafiaram esse pressuposto constitucional da guerra e da paz, emergência e não emergência, como realidades excludentes na qual a paz/não emergência é a norma. Para Lobel, a i Guerra Mundial já havia introduzido a idéia de que havia elementos civis no interior do país que não eram confiáveis nem em tempos de paz, razão pela qual a Washington’s Military Intelligence Division (mid), que poderia ter sido desmantelada após a guerra, se manteve ativa, juntamente com o fbi, na vigilância de indivíduos considerados subversivos. A partir da ii Guerra Mundial, a distinção entre guerra e paz e a idéia de que guerras duram períodos relativamente curtos teria caído completamente por terra, uma vez que o conflito contra o comunismo tornou o estado de exceção permanente.

Na avaliação de Lobel, esse estado de emergência permanente justificou a expansão do poder executivo e violações de direitos civis, especialmente de imigrantes, não cidadãos e dissidentes políticos, em diversos momentos do século xx. Segundo o autor, a atual guerra contra o terror representa uma continuidade dessa tradição histórica de ampliar o poder executivo e restringir direitos e liberdades civis em nome da segurança nacional. Entendendo que o comunismo foi substituído pelo terrorismo numa guerra de longo-prazo, permanente e na qual não se sabe ao certo quem é o inimigo, Lobel considera que a sociedade americana está diante de graves ameaças às liberdades civis, ameaças que somente poderiam ser combatidas se os excessos e violações ocorridas durante a guerra fria fossem constantemente relembrados.

Graber (2005) também olhou para a história dos conflitos militares dos eua, mas com o objetivo de qualificar afirmações presentes no debate sobre as políticas de segurança levadas a cabo pelo governo Bush. Ao explorar diversos períodos e momentos de crise na história dos eua, o autor descobriu que alguns direitos civis foram expandidos ao invés de restringidos. Esses períodos e momentos teriam sido ignorados por muitos historiadores e constitucionalistas, que olharam apenas para o modo como as crises foram debeladas por meio de superreações governamentais que restringiram as liberdades individuais. Segundo Graber, ao narrar de forma seletiva o modo como conflitos e tensões militares influenciaram os direitos e liberdades civis ao longo da história dos eua, grande parte dos trabalhos não puderam captar adequadamente como e por que alguns direitos e liberdades civis são restringidos em tempos de crise enquanto outros são expandidos ou consolidados.

A análise de Graber dos episódios e fatos geralmente ignorados no debate sobre a Constituição em tempos de guerra revela que a explicação a respeito do comportamento do governo em relação aos direitos civis estaria menos relacionada à crise per se do que à presença de condições específicas durante as crises. Segundo o autor, tanto as histórias de violações quanto as histórias de proteção e expansão sugerem que as políticas de direitos civis quando os eua estão em guerra são determinadas por quatro fatores: necessidade de mobilização, justificação ideológica para a guerra, identidade dos potenciais detentores de direitos e predisposição dos atores políticos centrais ao sistema político.

Graber argumenta que, sempre que houver a combinação de alguns desses quatro fatores em momentos de crise, é provável que haja políticas governamentais que afetarão os direitos civis. Direitos e liberdades civis serão protegidos durante um conflito quando: i) a guerra exigir a mobilização econômica ou militar de larga escala dos beneficiários potenciais das políticas de proteção de direitos; ii) a guerra for combatida sob premissas ideológicas que ditam avanços em direitos e liberdades civis; iii) os beneficiários dos direitos ou liberdades civis forem, por razões étnicas ou ideológicas, identificados como americanos leais ou aliados dos eua na guerra; iv) atores políticos importantes, internos ou externos ao governo, entenderem o conflito como uma oportunidade adicional para avançar compromissos existentes em relação a liberdades e direitos civis específicos. Por outro lado, direitos e liberdades civis tendem a ser restringidos quando as pessoas alvo das políticas são ideológica ou etnicamente identificadas como inimigos dos eua ou quando as autoridades governamentais vêem os conflitos militares como uma oportunidade para implementar políticas que sejam limitadoras dos direitos e liberdades civis.

Segundo Graber, esses fatores ajudariam a explicar as políticas sobre direitos civis em guerras anteriores e na guerra contemporânea contra o terror, que apresentaria repercussões positivas e negativas sobre os direitos civis. Na avaliação do autor, George W. Bush e seus auxiliares assumiram o governo predispostos a considerar estrangeiros como portadores de poucos direitos e com a convicção de que o executivo deveria ter uma atuação mais incisiva na área de segurança. A crise de segurança desencadeada pelos atentados de 11 de setembro, praticados por terroristas estrangeiros com características étnicas e ideológicas bem definidas, propiciou ao governo Bush apoio público suficiente para que levasse adiante políticas de segurança agressivas em relação aos direitos civis da população que possuía as mesmas características étnicas e ideológicas dos terroristas (populações árabes e muçulmanas). Mas a alteração na correlação de forças a favor do presidente e o crescimento do poder dos militares dentro do governo também levaram ao fortalecimento de duas posições favoráveis às liberdades individuais, mas nunca lembrada nos debates: o direito, assegurado pela Segunda Emenda e defendido pelo governo Bush, de os cidadãos americanos possuírem armas de fogo; e o direito de os gays ingressarem nas Forças Armadas sem discriminações, defendido por militares que desde antes de 11 de setembro já estavam comprometidos com uma força armada racialmente diversa. Assim, conclui o autor, o destino das liberdades civis em tempos de guerra dependeria em grande medida do modo como as crises militares efetivamente transferem poder para atores políticos inclinados ou não a apoiar os direitos e liberdades civis.

Ao explorar a história dos eua em momentos de crise com um olhar mais analítico do que descritivo, Graber não apenas qualificou o debate sobre o constitucionalismo em tempos de guerra. Refutou também as justificativas da administração Bush de que em tempos de guerra restrições às liberdades individuais são necessárias e inevitáveis. Como Graber mostra, a história não apóia esse ponto de vista. Governos anteriores agiram de outra forma quando se viram diante de conflitos militares que ameaçaram a segurança interna dos eua. A política de restringir direitos, no passado e no presente, parece ser muito mais fruto de uma escolha política do que o resultado de necessidades objetivas de tempos de conflito. O fato parece ficar mais claro quando as respostas americanas às ameaças terroristas são comparadas com as respostas que outros países deram a tais ameaças. Essa comparação foi, até o momento, pouco explorada na literatura que tem discutido as relações entre segurança e direitos civis nos eua pós 11 de setembro, mas aparece numa quarta e última perspectiva de análise sobre o tema: os trabalhos de caráter mais positivista, preocupados em descrever e explicar as ações do governo Bush na área de segurança e suas implicações para os direitos civis.

 

As análises positivistas

Um quarto e último conjunto de estudos sobre o tema segurança e direitos civis que apareceu após os atentados de 11 de setembro é formado por trabalhos de cunho mais positivista que procuram descrever e caracterizar as tensões entre direitos civis e as leis e políticas antiterror adotadas pelos eua a partir do final de 2001. Deixando de lado as abordagens normativas que marcam muitos dos trabalhos discutidos anteriormente, alguns autores se concentraram em descrever as implicações para os direitos civis das mudanças legais ocorridas nos eua (Levin, 2007), do modelo de guerra ao terror (Luban, 2005) e do cenário pós 11 de setembro (Bank, 2005). Outros trabalhos focaram nas chamadas políticas da segunda onda (Sidel, 2007; e Klosel, 2007), enquanto outros mobilizaram análises comparadas (Moran, 2007) a fim de entender melhor as respostas dos eua às ameaças terroristas e o seu impacto sobre os direitos civis.

 

Interpretações descritivas

 

Levin (2007) explorou as medidas legais e políticas adotadas pelo governo Bush para prender e julgar terroristas após 11 de setembro e o modo como o legislativo, o judiciário e a sociedade civil reagiram a tais medidas. Diante das várias derrotas que a Suprema Corte impôs ao governo a respeito da autoridade presidencial para julgar e prender cidadãos e não cidadãos suspeitos de terrorismo, e diante das reações do governo Bush a tais derrotas, Levin sustentou que uma recalibragem entre a autoridade para acusação e as liberdades civis parecia estar em curso durante o governo Bush. Entretanto, o autor não fez nenhum esforço para caracterizar o que seria essa recalibragem, produzindo uma análise meramente descritiva das políticas da administração Bush e das resistências que elas suscitaram, especialmente no Judiciário.

A idéia de uma recalibragem dos poderes governamentais na área de segurança também foi explorada por Banks (2005), que realizou uma análise um pouco mais ousada sobre o significado das respostas governamentais aos ataques terroristas de 11 de setembro. Segundo Banks, as leis e políticas propostas e aprovadas durante a administração Bush sugeriam a emergência de um “novo normal”: um realinhamento permanente e de longo prazo da importância relativa da segurança entre os objetivos governamentais, que aparentemente estaria ocorrendo a expensas de um diagnóstico aprofundado sobre o terrorismo e seus antídotos. Para o autor, as principais evidências desse realinhamento eram notadas em três iniciativas da administração Bush:

 

i) nos programas de segurança pública implementados para deter e interrogar suspeitos de terrorismo, programas esses que teriam afetado diversas proteções legais criadas para preservar as liberdades civis: envolvimento do fbi em atividades de inteligência interna, uso do sistema de justiça criminal contra não cidadãos, esforços para negar aos presos na guerra ao terror as garantis do devido processo legal, etc.

 

ii) na mais ampla revisão das agências e funções governamentais desde a ii Guerra Mundial, algo que resultou na criação de um novo departamento executivo para orientar a segurança doméstica dos eua o Department of Homeland Security (dhs), incumbido de desenvolver e coordenar a implementação de uma estratégia nacional abrangente para a segurança dos eua contra ataques ou ameaças terroristas;

 

iii) no aumento da participação dos militares em assuntos de segurança interna mediante a criação do United States Northern Command (Northcom), que se tornou a primeira entidade militar com uma missão no interior dos eua desde a Guerra Civil; e

 

iv) na iniciativa de invadir o Iraque como parte da guerra ao terror e de uma nova estratégia de “guerra preventiva”.

 

Banks considera que essas quatro políticas teriam profundas implicações de longo prazo para a governança e os direitos civis, daí a conclusão do autor de que um novo normal estaria se configurando nos eua. Assim como Levin, Banks também não arriscou nenhum prognóstico sobre a posição que os direitos civis ocupariam dentro desse novo normal. Segundo o autor, internamente, as implicações de longo prazo que esse novo normal poderia trazer para as liberdades civis dependeriam de a Suprema Corte decidir limitar ou não a configuração do normal levando em conta princípios do devido processo legal.

David Luban (2005), por outro lado, arriscou um prognóstico a respeito da situação dos direitos humanos no período pós 11 de setembro. Segundo Luban, o modelo de guerra ao terror implementado pela administração Bush rebaixou o padrão de proteção aos direitos humanos ao combinar seletivamente o modelo de guerra com o modelo de lei criminal no melhor interesse dos eua, preocupado em maximizar sua capacidade de eliminar, capturar e julgar terroristas da Al Qaeda. Segundo Luban, a administração Bush entendeu que tratar os suspeitos de terrorismo como criminosos comuns representaria um risco elevado à segurança nacional, pois como criminosos eles teriam que ser presos e levados à justiça de acordo com as regras do devido processo legal. Por outro lado, reconhecer os inimigos como prisioneiros de guerra e conceder a eles os direitos estabelecidos pela iii Convenção de Genebra não parecia adequado, tendo em vista que a Convenção restringe a definição de prisioneiros de guerra a soldados de exércitos regulares ou membros de milícias e outros corpos voluntários que obedecem a um comando e podem ser identificados como combatentes. A saída da administração Bush teria sido a de declarar os presos da guerra ao terror como “combatentes inimigos ilegais”, categoria mista que permitiria rebaixar as proteções aos direitos humanos contidas em ambos os modelos. De acordo com Luban, o perigo desse modelo hibrido residiria no fato de ele estar sendo usado numa guerra pouco convencional. Como não há Estados ou grupos inimigos com quem se possa negociar uma trégua ou a rendição, a guerra ao terror não poderia acabar até que os eua a abandonasse. Nesse sentido, o rebaixamento da proteção dos direitos humanos contido no modelo híbrido da guerra-lei não seria temporário e sim permanente. Daí a conclusão forte de Luban de que a guerra contra o terror representaria o fim dos direitos humanos.

Embora Luban tenha feito uma caracterização mais interessante do que a realizada por Levin e Banks sobre o padrão de respostas governamentais que emergiu nos eua pós 11 de setembro e de suas implicações para os direitos humanos, seu prognóstico mostrou-se equivocado. O modelo guerra-lei descrito por ele foi em parte descaracterizado pelas decisões da Suprema Corte, que concedeu aos presos de Guantánamo o direito de impetrar habeas corpus para contestar prisões perante a justiça americana. De qualquer forma, o trabalho de Luban parece ter sido mais bem sucedido do que os trabalhos de Levin e Banks no esforço de captar e sistematizar analiticamente as intenções do governo Bush ao declarar a guerra ao terror.

Interpretações centradas na segurança

onda de leis e políticas antiterror

 

Independentemente dos méritos ou deméritos dos trabalhos de Levin, Banks e Luban, eles tiveram como foco primordial aquilo que Sidel (2007) chamou de “primeira onda” de leis e políticas antiterror: as primeiras e mais imediatas respostas do governo Bush aos ataques de 11 de setembro - a aprovação do Patriot Act e os esforços para julgar os presos na guerra ao terror como combatentes inimigos. Trabalhos mais recentes procuraram estender as análises às políticas da segunda onda, que a partir de 2002 começaram a se sobrepor às políticas da primeira onda. No centro dos trabalhos que analisaram essa segunda onda de iniciativas antiterror está a tensão entre o direito à privacidade, de um lado, e os esforços de inclusão da sociedade civil no combate ao terrorismo e os programas de mineração de dados, de outro. Essa tensão é discutida nos trabalhos de Klosek (2007) e Sidel (2007).

Klosek discute o modo como o direito de privacidade foi e pode ser afetado pelas políticas de segurança levadas a cabo pelo governo Bush depois dos ataques ao Pentágono e ao World Trade Center, especialmente os esforços do governo federal para ter acesso a dados do setor privado e desenvolver programas de mineração de dados. Segundo a autora, o maior problema dessas iniciativas é que elas foram implementadas ou desenvolvidas sob grande segredo, impedindo avaliações públicas e eventuais contestações sobre violações do direito de privacidade.

Para Klosek, os esforços governamentais para ter acesso a dados do setor privado criaram tensões tanto nas relações das empresas com os seus clientes quanto nas relações das empresas com o governo. As tensões vieram à tona quando foi divulgado, em maio de 2006, que a Nacional Security Agency (nsa) havia firmado um acordo, logo após os atentados de 11 de setembro, para adquirir das empresas de telecomunicações AT&T, Version e BellSouth registros de comunicação de cerca de 200 milhões de usuários. Relatos sobre iniciativas semelhantes desenvolvidas junto a empresas aéreas, instituições financeiras, supermercados e redes de utilidade também apareceram na imprensa. Essas notícias levaram diversos clientes dessas empresas à Justiça, alegando que a divulgação dos registros teria violado a política de privacidade das empresas. Segundo Klosek, até 2007 essas ações judiciais não tinham resultado em condenações, mas haviam motivado a AT&T a alterar sua política de privacidade, que passou a considerar registros de chamadas telefônicas e de uso de internet como propriedade corporativa, evitando assim ações futuras de usuários que poderiam alegar que dados não autorizados foram enviados ao governo. Na avaliação da autora, tal mudança seria muito significativa, pois poderia estabelecer um precedente para que outras empresas de dentro e de fora do setor de telecomunicações seguissem a AT&T, dando início a um novo momento na história das relações entre direito de privacidade, empresas privadas e governo.

Paralelamente ao enfraquecimento dos mecanismos corporativos que visam proteger o direito de privacidade, Klosek também relata que o cenário pós 11 de setembro foi marcado por um crescimento do interesse governamental em desenvolver e implementar novos sistemas de mineração de dados para combater o terrorismo. Programas de mineração de dados abrangentes como o Carnivore, o Computer Assisted Passenger Prescreening System ii (capps ii), o Threat and Local Observation Notice (talon) e o Multistate Anti-Terrorism Information ExChange (matrix) foram propostos, trazendo para a agenda dos defensores das liberdades civis preocupações relativas à ausência de precisão, possibilidade de erros e intrusões de privacidade decorrentes do uso de tais programas. Em relação às intrusões na privacidade, Klosek dá relevo a quatro preocupações diferentes. Em primeiro lugar, a autora considera que os programas de mineração de dados apresentam grande potencial para abusos e seria uma questão de tempo para os dados serem usados por razões políticas e outras que não a prevenção e o combate ao terrorismo. Outra preocupação tem a ver com o fato de se ter grande quantidade de informações disponíveis em bases de dados, algo que suscitaria preocupações de segurança. Uma terceira preocupação é que os programas de mineração de dados realizam análises abrangentes, invertendo a bem estabelecida tradição de monitorar apenas indivíduos suspeitos da prática de algum crime ou ilegalidade. Por fim, a autora sustenta que não se sabe ao certo o grau de efetividade desses programas.

Compartilhando das mesmas preocupações de Klosek acerca das ameaças que as políticas de segunda onda trazem à privacidade individual, Mark Sidel (2007) realizou uma análise descritiva mais abrangente das iniciativas governamentais que se seguiram ao Patriot Act. Além de alertar para a existência de um projeto de lei ainda mais draconiano do que o Patriot Act −o Domestic Security Enchancement Act de 2003, projeto que ficou conhecido como Patriot Act ii−, que poderia ser aprovado caso um novo ataque ocorresse, Sidel descreve e analisa dois conjuntos de iniciativas governamentais para combater o terrorismo: os programas de mineração de dados projetados pelo governo Bush (o capps ii, o matrix e o Total Information Awareness [tia]), também discutidos por Klosek; e os programas voltados para a inclusão da sociedade civil no combate ao terrorismo na condição de “olhos e ouvidos” das agências de execução da lei – o Terrorism Information and Prevention System (tips), o Eagle Eyes, o Airport Watch e o Highway Watch.

Propostas num contexto em que o medo e o ufanismo começavam a arrefecer, essas iniciativas do governo Bush enfrentaram uma forte reação da sociedade civil e foram bloqueadas. Segundo Sidel, na maioria dos casos a reação veio de uma aliança inusitada e ad hoc que uniu na mesma frente defensores das liberdades civis, grupos liberais e organizações conservadoras. Essa aliança entre forças políticas situadas em diferentes posições do espectro político foi capaz de bloquear programas como o tia, o capps ii e o tips. Ainda segundo Sidel, há indícios de que o governo Bush reagiu a essa oposição lançando mão de duas estratégias: incluiu parte das medidas inicialmente bloqueadas em outras leis e programas de segurança pública; e deslocou para os Estados a implementação das políticas e programas que enfrentaram oposição. Segundo o autor, a trajetória do capps ii e do tips são exemplos mais ou menos claros da primeira estratégia. Abandonado em seu formato original, o capps ii deu lugar a um programa chamado Secure Flight, que grupos de privacidade e defensores das liberdades civis acusaram de ser um pequeno capps ii travestido de outro nome. Já o tips teria renascido em outros programas de responsabilização da sociedade civil no combate ao terrorismo, caso do Airport Watch e do Highway Watch. Em relação à estratégia de descentralizar os programas, Sidel sustenta que ela pôde ser vista em relação ao programa de mineração de dados tia, encerrado pelo Congresso em 2003, mas que reapareceu com um formato parecido na agenda política de 13 estados com o nome de matrix. Incentivado pelo Department Home of Security e viabilizado por meio de uma parceria com uma empresa privada, este programa também enfrentou protestos e acabou encerrado em 2005.

Segundo Sidel, esses exemplos ilustram o que teria sido mais significativo nessa segunda onda de leis e políticas antiterror: o uso de diferentes estratégias governamentais para aprovar novas e mais duras medidas antiterror; e o fortalecimento das estratégias e táticas de resistência a essas tentativas. Colocando a questão em perspectiva comparada, Sidel sustenta que o fortalecimento e o sucesso das estratégias de resistência seria um dos elementos que diferenciaria os eua de países como Grã Bretanha, Austrália e Índia, onde a construção de uma coalizão ampla entre grupos libertários e forças conservadoras não foi tão bem sucedida.

Uma análise comparativa

Em uma análise comparativa entre eua e Inglaterra a respeito do avanço dos poderes do Estado no cenário pós 11 de setembro, Moran (2005) também argumentou que a reação da sociedade civil organizada em defesa das liberdades individuais foi mais efetiva nos eua do que na Inglaterra. Mas o mesmo não teria ocorrido em relação ao Judiciário e ao Legislativo, que foram mais atuantes na Inglaterra. A análise de Moran contém uma tese menos alarmistas do que as teses presentes em boa parte da literatura produzida por autores norte-americanos a respeito das políticas de segurança pós 11 de setembro e o seu impacto sobre os direitos civis. Segundo o autor, as medidas de segurança adotadas pelo governo Bush promoveram a expansão do poder estatal, mas isso não deve ser visto de maneira isolada e sem considerar o modo como esses poderes têm sido usados pelas agências governamentais. O autor reconhece, por exemplo, que várias das mudanças introduzidas pelo Patriot Act ocorreram sob bases legais claras e racionais, estendendo poderes já usados contra o crime organizado para ações de combate ao terrorismo. Considera também que os poderes legais disponíveis ao estado foram, até 2005, usados pelo governo americano de maneira relativamente comedida. Além disso, Moran também sustenta que as relações entre estado e sociedade não podem ser vistas como se fossem relações de soma zero na qual o aumento do poder estatal implicaria em diminuição de liberdades civis. Para o autor, a expansão do poder estatal nos eua (e na Grã-Bretanha) ocorreu sob as estruturas de accountability democrático e sob os constrangimentos impostos pela mídia e organizações da sociedade civil.

Embora não endosse as teses mais alarmistas de que a expansão do poder estatal nos eua pós 11 de setembro arruinou as liberdades civis e o sistema político norte americano, Moran defende a tese de os poderes do estado ampliaram-se de tal forma após 11 de setembro que as teorias sociais que apostaram no declínio do estado no final do século xx e começo do século xxi foram colocadas na berlinda. Segundo o autor, nos eua e na Inglaterra, os poderes estatais de parar, investigar, vigiar, capturar, aprisionar e acusar foram, em alguns casos, expandidos para além dos parâmetros da Guerra Fria. No caso dos eua, a face interna mais evidente da ampliação desses poderes estaria estampada no modo como os estrangeiros passaram a ser tratados pelo governo americano e nos esforços para aumentar a capacidade de vigilância estatal, seja por meio do fbi ou de técnicas de mineração de dados.

Ao analisar as políticas antiterror dos eua de uma perspectiva comparada, Moran também pôde mostrar que tais políticas não devem ser vistas como o resultado necessário de uma realidade adversa que clama pelo aumento do poder do estado em detrimento das liberdades civis. Como o autor destaca, outros países que sofreram ataques terroristas de grande magnitude não consideraram o ataque um ato de guerra e, consequentemente, não reagiram com políticas e restrições às liberdades civis típicas de períodos de guerra. Além disso, o aumento do poder do estado e o seu impacto sobre as liberdades civis não pode ser considerado isoladamente, sem que se leve em conta as limitações impostas pela sociedade civil, legislativo e judiciário. Como Klosek e Sidel mostraram, várias das políticas de segunda onda foram barradas pela sociedade civil e pelo Congresso, enquanto outras políticas da primeira onda foram limitadas por decisões da Suprema Corte.

 

Considerações finais

 

Este artigo revisou parte da literatura acadêmica que tratou das tensões entre segurança e direitos civis no período pós 11 de setembro. Os livros e artigos revisados apontam para a existência de trabalhos de quatro tipos: os que defendem radicalmente um dos lados da tensão entre segurança e direitos civis; os que tratam o tema com a abordagem das políticas públicas; os que analisam o problema de uma perspectiva constitucional; e os que tentam lançar um olhar mais positivista e analítico sobre as relações entre segurança e direitos civis nos eua pós 11 de setembro. A despeito das diferentes perspectivas, os trabalhos analisados parecem apontar, com diferentes ênfases, para o fato de que os atentados de 11 de setembro propiciaram a aprovação de leis e políticas antiterror que afetaram de forma desigual os direitos e liberdades individuais de cidadãos e não-cidadãos residentes nos eua. Os não-cidadãos residentes foram os mais prejudicados. Essas leis e políticas propiciaram também um aumento da capacidade de vigilância/investigação do Estado norte americano, que pode agora usá-la no controle da criminalidade comum e até mesmo de opositores e dissidentes políticos. Num primeiro momento, essas mudanças ocorreram sem grandes resistências. Mas resistências não demoraram a aparecer, vindo da sociedade civil, do legislativo e do judiciário, que frustraram a implementação de algumas políticas e leis antiterror.

 

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As análises positivistas

 

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Literatura de apoio

 

Katz, Richard S. Political Institutions in the United States. Oxford: Oxford University Press, 2007.

 

Toinet, Marie-France. El sistema político de los Estados Unidos. México: Fondo de Cultura Económica, 1994.

 

Cintra, A. O. “Presidencialismo e Parlamentarismo: são importantes as instituições?”, in Lucia Avelar e Antonio Octávio Cintra (org.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 2.a ed., São Paulo: Fundação Konrad Adenauer e Editora unesp, 2007.

* Este artigo contou com o apoio do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (inct-ineu).

** Cleber da Silva Lopes tiene una Maestría en Ciencias Políticas de la Unicamp y Doctorado en Ciencias Políticas de la usp, donde desarrolla la tesis sobre el control de la seguridad privada. Participa en el Centro de Investigación de Política Pública de la usp (nupp-usp) y el Instituto Nacional de Estudios Científicos y Tecnológicos de los Estados Unidos (inct-ineu), contacto: Universidade Estadual de Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, Rodovia Celso Garcia Cid (PR 445), km 380 Campus Perobal, 86051-990 - Londrina, PR - Brasil - Caixa-postal: 6001.

*** Es Doctor y profesor del Departamento de Ciencia Política en la ifch/Unicamp e investigador en el Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (inct-ineu). Desarrolla investigación sobre poder judicial, derechos fundamentales, acseso a la justicia, derechos humanos y derecho transnacional, e-mail: [andre.koerner@psychologie.tu-chemnitz.de].

1 Nos eua o termo procurador-geral (attorney general) designa o chefe do Departamento de Justiça, autoridade nomeada pelo presidente e responsável pelas políticas de lei e ordem do governo federal. Sobre a organização do poder executivo nos eua ver Katz (2007) e Toinet (1994).

2 Patriot Act é como ficou conhecida a Lei Pública 107-56, assinada pelo presidente George W. Bush em 26 de outubro de 2001, cujo título completo é “The Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act”. Trata-se da mais conhecida e importante medida antiterror adotado pelo governo Bush imediatamente após os atentados de 11 de setembro. O ato alterou várias leis federais, incluindo: (i) Wiretap Statute (Title iii); (ii) Electronic Communications Privacy Act (ecpa), (iii) Computer Fraud and Abuse Act, (iv) o Foreign Intelligence Act (fisa), (v) Family Education Rights and Privacy Act, (vi) Pen Register and Trap and Trace Statute, (vii) Money Laudering Act, (viii) Immigration and Nationality Act, (ix) Money Laudering Control Act, (x) Bank Secrecy Act, (xi) Right to Financial Privacy Act; e (xii) Fair Credit Reporting Act.

3 O Art. 1.°, seção 8, ítem 11, da Constituição dos eua define como uma das competências do Congresso “declarar guerra, expedir cartas de corso, e estabelecer regras para apresamentos em terra e no mar”.

4 The Center Foundation é um think tank que atua na área de políticas públicas com a crença de que a prosperidade e a segurança dos eua dependem de uma combinação entre governo eficiente, democracia aberta e livre mercado.

5 O Patriot Act promulgado em 2001 definiu que várias cláusulas da lei expirariam no final de 2005, dentre as quais autorizações para escutas telefônicas em casos de terrorismo, compartilhamento de escutas e informações entre agências de segurança doméstica e agencias de inteligência externa, escutas itinerantes, autoridade para trap and trace, acesso a dados de empresas, etc.

6 Mais informações disponíveis em [http://www.9-11commission.gov/] (acesso em 03 de outubro de 2010).

7 O Migration Policy Institute (mpi) é um think tank independente dedicado ao estudo de movimentos migratórios. O Instituto realiza pesquisas, desenvolve propostas de políticas e oferece avaliação de políticas de migração e refugiados no nível local, nacional, e internacional. Mais informações disponíveis em: [http://www.migrationpolicy.org/] (acesso em 03 de otubro de 2010).

8 Intitulado Long-Term Legal Strategy Project for Preserving Security and Democratic Freedom in the War on Terrorism, o projeto promoveu encontros fechados com alguns observadores britânicos e com 17 especialistas americanos, dentre os quais Rand Beers, Robert McNamara e Michael Chertoff.

9 National Security Letter (nsl) é uma forma de intimação administrativa utilizada pelo fbi e outras agências governamentais para constranger empresas e organizações a enviar informações sobre indivíduos suspeitos de atividades criminosas. O instrumento pode ser usado sem autorização judicial ou apresentação de uma causa provável de que a pessoa investigada é suspeita de um crime. Os intimados pelas nsl foram inicialmente impedidos de falar a respeito do episódio com investigados, imprensa, ativistas ou outras pessoas interessadas em informações públicas sobre o uso dessas prerrogativas por parte das agências do governo americano. Contudo, essa mordaça foi considerada inconstitucional pela Suprema Corte no caso Doe v. Ashcroft.

10 No momento em que escreveu o texto, antes da decisão da Suprema Corte no caso Boumediene v. Bush, a avaliação de Pfiffner a respeito das derrotas impostas ao presidente pela Suprema Corte nos casos Rasul v. Bush, Hamdi v. Rumsfeld e Hamdan v. Rumsfeld era a de que elas não tinham sido suficientes para impedir a expansão dos poderes presidenciais, já que na sequência do caso Hamdan o Congresso aprovou o Military Commission Act (mca), que negou aos presos de Guantánamo o direito a habeas corpus. Quanto ao legislativo, Pfiffner considera que a única derrota efetiva imposta pelo Congresso ocorreu com a aprovação do Detainee Treatment Act (dta), que vetou a prática de tortura cometida por agentes americanos em qualquer parte do mundo.

11 Uma das diferenças centrais entre sistemas políticos presidencialistas e parlamentarias reside especificamente nesse ponto. Nos sistemas parlamentaristas há delegação de poderes do legislativo para o executivo (a maioria parlamentar escolhe o primeiro ministro), enquanto que no sistema presidencialista há separação e divisão de poderes, cada qual eleito em pleitos independentes. Para uma comparação entre presidencialismo e parlamentarismo sob a ótica da ciência política ver Cintra (2007).