Nuevos Paradigmas de las Ciencias Sociales Latinoamericanas issn 2346-0377

vol. II, n.º 4, julio-diciembre 2011, Andrei Koerner et al. pp. 17 a 54

Sobre el poder judicial y la judicialización1

Andrei Koerner*, Celly Cook Inatomi** y Márcia Baratto***

 

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On the judiciary and prosecution

 

Resumen

 

El presente artículo presenta un análisis crítico de la noción “judicialización de la política”, a través de su validez teórica para una pregunta y una reflexión sobre el poder judicial.

 

Palabras clave: Poder judicial en Brasil; Política; Democracia; Constitucionalismo, Estado de derecho.

 

Abstract

 

This article presents a critical analysis of the notion “political judiciary”, trough its theoric validity for a question and a though about the judicial power.

 

Keywords: Judicial power in Brasil, Politics, Democracy, Constitution, Rule of law.

 

Fecha de presentación: 1.º de abril de 2011. Revisión: 22 de julio de 2011. Fecha de aceptación: 3 de septiembre de 2011.

 

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O presente artigo apresenta uma análise crítica da noção “judicialização da política”, apreciando a sua validade teórica para a pesquisa e a reflexão sobre o Poder Judiciário. Não se questiona a sua validade do ponto de vista normativo mas da sua capacidade de dar conta do conjunto de fenômenos a que se refere e, assim, da sua utilidade para a pesquisa empírica e a reflexão sobre os problemas políticos que ele suscita. O artigo finaliza com a proposta de um quadro analítico para a pesquisa sobre o Judiciário nas democracias constitucionais contemporâneas. A apresentação tem os seguintes pontos: (1) a análise crítica da noção “judicialização da política”; (2) contra­exemplos a partir do Judiciário Brasileiro; (3) apresentação de quadro analítico para a pesquisa empírica sobre instituições judiciais e a ordem política.

 

Analise crítica da noção

“judicialização da política”

 

Será criticado o termo “judicialização da política”, formulado por Tate e Valinder2 no início dos anos noventa, e publicado no livro The global expansion os judicial power, e que se tornou de uso corrente desde então.

Apresenta-se inicialmente a definição adotada pelos autores (A judicialização da política). Em seguida, mostram-se alguns de seus problemas: ela apresenta deslizes conceituais, que simplificam as relações entre os tribunais e a política, pois revela uma concepção estreita da jurisdição e do direito (A judicialização e o direito); ela apresenta uma abordagem parcial e enviesada sobre as transformações dos Estados contemporâneos (Sobre as condições subjacentes à judicialização), e ela revela ambigüidades que a tornam analiticamente inútil, como se vê com a análise de diversas concepções de política.

 

A judicialização da política

 

Vamos aos trabalhos de Tate e Vallinder. Interessa inicialmente o artigo de Tornbjorn Vallinder3 When courts go marching in, que pretende explicitar o conceito de judicialização da política. Num primeiro sentido, este conceito é sinônimo da “expansão global do Poder Judiciário”, que se refere à infusão de processos decisórios judiciais ou análogos a eles a arenas políticas nas quais eles não ocorriam previamente.

O autor parte da definição dada por um dicionário de inglês (Oxford), que define “judicilização” como:

 

por um lado, a via de um julgamento legal, seja no exercício das funções por um juiz seja no de sua capacidade; por meio de –ou em relação com– a administração da justiça, o processo legal (judicial), ou por sentença de uma corte ou um juiz; ou, por outro lado, de acordo com a maneira (estilo, jeito) de um juiz, com o conhecimento e perfil judicial.

 

Dessa definição lexicográfica, o autor retira o significado de “judicialização”:

 

1. A expansão do domínio das cortes ou dos juízes em detrimento dos políticos e/ou da administração (the province of courts or the judges at the expense of the politicians and/or the administration), isto é, a transferência de direitos de tomada de decisão da legislatura, do gabinete ou do serviço público para as cortes; ou, no mínimo,

 

2. A expansão de métodos judiciais de tomada de decisão para além do próprio domínio do Judiciário.

 

Em resumo: judicialização envolve essencialmente desviar algo para a forma de um processo judicial4.

Ele diferencia as características das cortes e das legislaturas em função dos seguintes critérios: atores, métodos de trabalho, regras básicas de decisão, a resposta e as implicações da decisão. As cortes têm como atores as duas partes do litígio e um terceiro, que atuam num processo de produção de evidências e argumentação em audiências públicas; a decisão é tomada por um juiz imparcial e se fixa em casos individuais, cujos fatos ela determina e estabelece a regra relevante. A decisão adquire o estatuto de “a única solução correta”. Na legislatura há múltiplos atores, que estabelecem relações de barganha, compromissos e alianças ocasionais; a decisão é tomada pelo princípio majoritário e tem o caráter de fixar regras gerais sobre políticas, implicando a alocação de valores na comunidade política. A decisão tem o caráter de “a solução politicamente possível”5.

Ele reconhece que a distinção não é nítida (como se vê no plea bargaining e no princípio do stare decisis), mas considera que “é claro que os dois modelos conformam dois diferentes princípios e dois papéis correspondentes, ambos indispensáveis numa democracia”. Para fazer valer esses pontos, cita Herbert Wechsler (1959-60) para quem “no [âmbito] judicial a ênfase está no papel da razão e dos princípios, distinguindo-se do legislativo e do executivo em que se apreciam valores em conflitos”. Assim, Vallinder sintetiza que

 

é a tarefa das cortes proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, o que, seguindo Isaiah Berlin, chama-se liberdade “negativa”. A legislatura, por outro lado, tem que cuidar dos direitos e obrigações da maioria (legislativa). A judicialização da política, poderia ser chamada, grosso modo, a expansão do primeiro princípio em detrimento do segundo6.

 

Mais adiante, afirma que vê a decisão judicial e a decisão política majoritária como dois pontos extremos de uma escala: num ponto está o governo dos juízes e no outro o majoritarismo total. Assim, a judicialização da política significaria que nas últimas décadas verifica-se um movimento em direção ao primeiro pólo da escala7.

É uma definição estipulativa que distingue as características de dois modelos de decisão, o judicial e o majoritário, que são colocados em termos típico-ideais, afirmandose que nas situações empíricas as distinções não são claras. Eles são associados a dois princípios de decisão, os quais se distinguem apenas em termos de ênfase ou tendência. Os dois modelos são também associados a dois espaços ou centros de decisão: as “Cortes” e a “Legislatura”. Os dois modelos de decisão são colocados numa espécie de jogo de soma zero e as mudanças nas suas relações são interpretadas como um processo histórico. Assim, nessa caracterização, os dois modelos distintos de tomada de decisão passam da condição de tipos ideais, de extremos de uma escala, para a de indícios de um fenômeno identificável: a expansão global do Poder Judiciário. As democracias contemporâneas estariam passando por um processo de expansão do Poder Judiciário, que levaria ao domínio dos juízes sobre as decisões políticas em detrimento dos representantes eleitos, presentes nas instituições majoritárias.

A judicialização da política teria como background, a partir da segunda metade do século xx: a reorganização das democracias européias após à Segunda Guerra mundial, como prevenção ao processo que permitiu a ascensão de Hitler ao poder em 1933; as reações ao planejamento estatal da economia, em que levaram ao Judiciário a contestação ao predomínio do Executivo no intervencionismo estatal; a restauração de teorias políticas deontológicas e/ou de direito natural em resposta ao utilitarismo predominante na primeira metade do século xx; o peso crescente do modelo institucional dos Estados Unidos e da corte constitucional da Áustria, incorporado por organizações internacionais8.

No capítulo denominado “Why the expansion of judicial power?”, C. Neal Tate9 formula um modelo com capacidade preditiva da ocorrência da judicialização. Ele procura sistematizar quais seriam as condições necessárias, facilitadoras e as eficientes da judicialização. A democracia é a pré-condição necessária, as condições que facilitam mas não provocam a judicialização são: um sistema de separação dos poderes, uma política de direitos, um sistema de grupos de interesse e uma oposição que conhece os meios judiciais para atingir seus interesses, partidos fracos ou coalizões governamentais frágeis nas instituições majoritárias que levam a impasses políticos, apoio inadequado do público (às instituições majoritárias) e a delegação de autoridade de decisão em algumas áreas de políticas. Sem essas condições, pareceria “altamente improvável” que a judicialização possa ir muito longe. Porém, a judicialização ocorre “apenas porque os juízes decidem que eles devem: 1. Participar no processo de tomada de decisão que poderia ser deixado à prudente ou insensata discrição de outra instituição ou, ao menos ocasionalmente; 2. Substituir pelas soluções de políticas que eles derivam aquelas que derivam de outras instituições”10. Assim, em termos simplificados, a judicialização teria uma pré-condição necessária (democracia), algumas facilitadoras (separação de poderes, política de direitos – a mais relevante, instituições majoritárias pouco efetivas etc), e uma condição eficiente: o ativismo de juízes em oposição à tendência dominante nas instituições majoritárias. A judicialização seria um fenômeno raro, mas tornar-se-ia cada vez mais freqüente, pela expansão das pré-condições estipuladas, que permitem que juízes ativistas possam promover suas preferências políticas contra os representantes eleitos11.

Dada essa definição, examinam-se a seguir as concepções dos autores sobre o direito e Judiciário, e suas relações com a democracia e a decisão judicial.

 

A judicialização e o direito

 

Vallinder coloca a oposição dos princípios de decisão como uma questão de ênfase ou de tendência. Se tomada ao pé da letra, esvaziaria sua própria tese, pois não seria mais do que uma diferença de “estilo” de tomada de decisão. Neste sentido, “judicialização da política” significaria: “nas democracias contemporâneas, a tendência é que a maioria das decisões seja tomada segundo princípios, regras e precedentes, seguindo uma apreciação racional dos conflitos de interesses. Os conflitos de valores sobre políticas tornar-se-iam argumentações racionais, baseadas em princípios e apresentadas em procedimentos regrados para a tomada de decisão, as quais se apuram segundo a regra da maioria dos representantes eleitos ou dos juizes nomeados, conforme o caso”. Apresentada desse modo, seria apenas uma tese sobre a racionalização dos processos decisórios nas democracias constitucionais em que a expressão judicialização enfatizaria um dos seus aspectos. Porém, o autor adota uma versão mais forte segundo a qual os modelos de decisão são contrapostos: a expansão do modelo de decisão judicial implica o fortalecimento das cortes e o correspondente enfraquecimento do modelo majoritário e da Legislatura. Com isso, recoloca o problema das relações entre constitucionalismo e democracia, de uma perspectiva processual.

Considerados como tipos, os pares opostos condensam três aspectos diferentes: os modelos de decisão (judicial versus majoritário), os princípios de decisão (segundo a razão e princípios versus segundo valores em conflito) e os centros, ou espaços, de decisão (cortes versus legislatura). A combinação desses três aspectos pode fazer sentido para a elaboração de tipos ideais, mas sem que eles sejam projetados diretamente sobre o processo histórico. Mas os tipos servem também para fixar uma idealização normativa dos papéis que devem ser desempenhados pelas cortes e as legislaturas numa democracia Isso se vê nas citações de Wechsler e Berlin mencionadas acima e no contraste entre as implicações políticas positivas ou negativas dos dois modelos de decisão majoritária e judicial.

Cabe então analisar a concepção de Judiciário e de direito idealizada pelo autor e suas relações com a democracia. A análise que segue centra-se em três questões; a colocação mesma escala dos modelos de decisão judicial e majoritário, as relações entre decisão judicial e direito e o tema do ativismo dos juízes.

 

Decisão judicial e decisão majoritária,

ou democracia e Estado de direito

 

A expansão do modelo de decisão judicial seria reveladora da expansão do governo dos juízes nas democracias contemporâneas. Isso porque um modelo de decisão só pode crescer às expensas do outro e, pela associação entre modelos e centros de decisão, a expansão de um modelo implica a supremacia de um centro de decisão (e dos atores que lhes são característicos) que é potencial ou efetivamente perigoso ao que se situa no pólo oposto. Assim, no capítulo final do livro os autores afirmam que a expansão das cortes tem implicações negativas para a viabilidade da democracia e a robustez da regra da maioria, porque esse processo sustentaria a dominação de elites privilegiadas e não representativas (os juízes), excluindo os cidadãos, que deveriam ter sua representação numa democracia política e numa administração responsiva12.

A contraposição entre os modelos de decisão judicial e majoritário recoloca o debate sobre constitucionalismo e democracia. A questão é saber se é possível colocar os dois modelos numa mesma escala, ou seja, se faz sentido falar, num sentido próprio, em governo dos juízes e em democracia puramente majoritária. Quanto à primeira alternativa, a resposta é negativa, pois juízes só exerceriam funções governamentais se deixassem de atuar na condição de juízes, passando a atuar como governantes. Isso porque, se consideramos o juiz como uma investidura, ele exerce um papel institucional que se caracteriza por certas regras e modelos de decisão13, dentre os quais basta referir aqui à ausência de direito de iniciativa e a validade de seus atos a um processo judicial constituído. O exercício de funções governamentais (sem se falar na legislativa) implica iniciativa e antecipação a cenários, sobre os quais se atua de forma preventiva e projetiva. Essas ações podem ser realizadas por indivíduos que exercem, até mesmo simultaneamente, o papel de juízes. Mas quando realizassem esse tipo de ação, eles não o fariam na condição de juízes14.

Porém, o ponto mais relevante é o da possibilidade de democracia puramente majoritária. Um regime democrático pressupõe uma estrutura normativa que seja relativamente independente das decisões da maioria imediata? Como O’Donnell15 mostrou de forma metódica, o que se chama de estado de direito (direitos políticos, liberdades cívicas) representam pressupostos implícitos aos modelos da democracia competitiva (Schumpeter) e da poliarquia (Dahl). Esses pressupostos não são condições apenas para a consistência da democracia majoritária ao longo do tempo (limitações dos direitos das minorias ao poder da maioria), mas para a própria possibilidade da democracia majoritária. Isso porque (além de determinadas estruturas e formas de relações sociais) é necessária uma estrutura normativa, relativamente independente das decisões imediatas da maioria, que defina as regras de pertencimento à comunidade política, às formas básicas de competição política, às liberdades de acesso à informação, de expressão, de associação etc. Note-se que essas regras devem ser estáveis e, pois, efetivadas e garantidas por sujeitos investidos nos papéis de administradores e juízes, que atuem com algum distanciamento em relação aos interesses imediatos de seu partido e, com relativa independência com relação à maioria legislativa. O que é indispensável não é propriamente a separação de centros de decisão, mas a investidura em papéis com modelos de decisão distintos16.

Assim como as relações entre estado de direito e democracia não são de oposição simples, também as relações entre os modelos de decisão judicial e majoritária não são da ordem de pólos que se contrapõem numa escala. Desse modo, os desenvolvimentos das democracias constitucionais contemporâneas podem significar não a tendência à supremacia de um centro de decisão sobre outro, mas uma recomposição de princípios, modelos e centros de decisão, o que representa uma ordem política diferente do modelo da democracia majoritária e do Estado liberal de direito.

 

Decisão judicial e produção normativa

 

Os autores não desenvolvem a análise sobre as questões de direito(s) e política(s) que são suscitadas quando se trata de decisões judiciais. A sua concepção de Judiciário e da decisão judicial parece ser a de que o primeiro compreende juízes profissionais que apreciam preferencial ou exclusivamente casos individuais. Esses litígios se dão em processos formalizados, que contam com uma sucessão de fases que permitem a produção de evidências e a argumentação das partes. O resultado será uma decisão por um juiz imparcial, o qual fixa racionalmente os fatos e regras aplicáveis, e estabelece a regra individual para o caso, que servirá como precedente para casos futuros substancialmente idênticos. A decisão judicial tem essa forma em virtude de seu objeto e finalidade: versa sobre litígios individuais e protege os direitos fundamentais, as “liberdades negativas”, dos cidadãos. Destacando-se da Legislatura, as cortes não produziriam regras gerais nem tratariam questões que envolvessem conflitos de valores sobre interesses coletivos.

Essa é uma concepção convencional das características do judiciário no Estado liberal, elaborada pelo positivismo jurídico, que tem sido bastante criticada pela teoria e a sociologia do direito. Além disso, ela não retrata a prática decisória dos juízes comuns e nem corresponde aos papéis dos juízes nos Estados europeus do século xix. Desde o final do século xix já se questionava a doutrina de que a sentença judicial é um processo de dedução de normas gerais, que não envolve a apreciação de eventos ou condições externos ao litígio entre as partes nem é voltada à realização de objetivos coletivos. A crítica a essa concepção está presente em trabalhos de teoria e sociologia do direito em diversos países, como se vê na obra de Jhering e seus seguidores na Alemanha, as doutrinas sociológicas do direito na França, o realismo jurídico norte-americano e o realismo escandinavo17. Quanto aos juízes, os tribunais comuns participavam da produção normativa (especialmente por meio dos avis e dos arrêts de principe dos tribunais de cassação) e, desde o início do século xix, os juízes administrativos exerceram ativamente o controle da administração pública, o que, inicialmente era mais para assegurar a regularidade administrativa pelo controle hierárquico sobre a burocracia do que para proteger direitos individuais, o que se desenvolveu mais tarde. Do mesmo modo, o Parlamento não atua em todos os seus momentos como instituição puramente majoritária, como se vê em funções judiciais que lhe são atribuídas (julgamento de crimes de responsabilidade de altas autoridades), na fixação das regras do jogo parlamentar (regimentos, códigos de conduta, comissões de inquérito, sindicâncias). Criam-se regras que tornam possível o jogo parlamentar e instituem-se juízes dentre os próprios parlamentares. Não se deve idealizar essas criações, afirmando que se movem segundo puros princípios racionais, mas elas indicam que os princípios e os modelos de decisão associam-se mais diretamente a certos tipos de investidura do que uma divisão entre centros de decisão.

Assim, princípios, modelos e centros de decisão não devem ser confundidos, para evitar a projeção de características de uns sobre outros. Ao mesmo tempo, não há uma distinção de natureza entre a atividade dos juízes, ou os princípios e modelos de decisão que eles adotam e as dos legisladores. Trata-se de investiduras com princípios, constrangimentos e objetivos distintos. Em ambas as situações entram em jogo princípios, argumentação racional e procedimentos regrados, assim como a barganha, conflitos de valores, objetivos políticos etc. Também não há uma distinção substancial entre normas jurídicas que estabelecem direitos fundamentais e as regras de programas de políticas públicas. Trata-se, em ambos os casos, de normas com princípios e propósitos, que fixam condutas e proibições em função de programas mais ou menos indeterminados, para cuja concretização será imprescindível o concurso dos agentes investidos para isso, sejam juízes, administradores ou mesmo o corpo legislativo, e outros agentes sociais implicados no processo18.

 

Ativismo dos juízes

 

O modelo elaborado por Tate19 é aparentemente simples, pois distingue as posições dos juízes apenas em função de atitudes, se são ativistas ou nãoativistas, e duas orientações, ou preferências políticas: de direita ou de esquerda. No entanto, a sua utilização é difícil, pois, como ele admite, conflitos entre juízes e instituições majoritárias não podem ser postos facilmente em uma única dimensão.

A contraposição simples não deixa espaço para levar em conta outras dimensões relevantes, como o social, o cultural e o religioso. Mas vale ressaltar que o modelo exclui uma fonte específica de conflitos nas decisões judiciais, que ocorrem entre juízes (e os demais agentes especializados no direito), ou entre juízes e representantes eleitos: são as divergências a respeito de questões de direito – fundamentos, interpretação, direitos a proteger, direitos e objetivos a promover, procedimentos, o papel, as prerrogativas e as atribuições dos juízes e de outros sujeitos do processo judicial etc. O modelo do juiz aplicador da lei a casos particulares só comporta duas alternativas; o juiz é não-ativista quando aplica metodicamente a regra geral aos casos particulares, ou, se for juiz de common law, busca fielmente, de forma politicamente neutra, a regra, ou o precedente, aplicável ao caso, ou o juiz é ativista, quando, para adotar decisões substitutivas das intenções dos representantes eleitos postas na lei, ele faz as suas preferências políticas intervirem no seu ofício de julgar, e com isso distorce a aplicação da lei ou a caracterização do caso sob julgamento.

Assim, conflitos e divergências entre os juízes e desses com os representantes eleitos não se dão em apenas uma dimensão esquerda-direita. A investidura e o papel dos juízes envolve questões e problemas específicos que podem resultar em conflitos com os representantes eleitos, mas que não resultam diretamente de suas orientações políticas20.

 

A judicialização e a política

 

Sobre as condições subjacentes à judicialização

 

Do ponto de vista das condições para a judicialização, os autores apontam um conjunto heterogêneo de fatores com os quais pretendem abarcar as transformações das democracias constitucionais contemporâneas em seu conjunto. Mas as condições apresentadas compreendem apenas algumas das características relevantes para a análise do tema. E não há uma discussão sistemática das relações entre as condições apresentadas para a judicialização e o conjunto mais amplo de estruturas, modalidades e sentido político da ação nas democracias representativas.

Os fatores genericamente apresentados provocam diversas indagações sobre o seu significado, alcance, interações. Assim, por exemplo, o tema da política de direitos, que é definida como “a aceitação do princípio de que indivíduos ou minorias têm direitos que podem ser efetivados (enforced) contra a vontade de supostas maiorias”, faria aumentar a significação política daqueles (os juízes) cuja locação institucional usualmente facilita que criem regras que favorecem as minorias diante da maioria. Porém, políticas de direitos têm implicações sociais muito mais gerais, tanto para as relações sociais como para as instituições e programas de ação estatais. Não se tem uma relação necessária entre as políticas de direitos e a maior relevância do Poder Judiciário, as discussões sobre o Judiciário no Welfare State nos anos setenta e oitenta indicavam antes o contrário, uma expansão da capacidade de ação da administração pública, com suas ações planificadas e de larga escala, perante as quais os objetos e métodos de decisão judicial tornavam-se impotentes. Neste caso, a política de direitos aliada à capacidade governamental da maioria não seria facilitadora da judicialização. Como a ilustração indica, coloca-se a questão de quais seriam os efeitos provocados pela combinação das condições facilitadoras e quais seriam os potenciais de judicialização provocados pelas diversas combinações possíveis.

Se o termo judicialização da política é utilizado num sentido macro-sociológico, como um diagnóstico das transformações mais amplas das sociedades contemporâneas, é vago, pois não se sabe a quais processos ele se refere. O termo é também parcial e enviesado, porque enfatiza mudanças no Judiciário, as quais são apenas uma parte de um conjunto mais amplo de mudanças na política contemporânea e porque sugere que o Judiciário “escapou” do figurino que lhe seria adequado dentro de uma democracia representativa, apontando uma usurpação do poder democrático, que tem como ponto de referência o modelo do Estado liberal e do positivismo legalista do século xix.

Vale a pena notar, incidentalmente, que o tema da judicialização da política foi formulado como um modelo e uma hipótese para servir de quadro a pesquisas comparadas. NO entanto, a sua recepção entre nós ocorreu sob a forma de um “estilo” de teorização corrente no campo do direito nos últimos tempos. Grosso modo, esse estilo adota os esquemas analíticos elaborados por teorias sociais para a interpretação macrosociológica, mas não os toma como premissas teóricas, que deveriam servir como suporte para formular hipóteses para a pesquisa empírica. Adotam-se esses esquemas como quadros descritivos de transformações sociais, como explicações já pré-elaboradas dos processos sociais ou políticos. E os acontecimentos passam a ter o papel de ilustrações, servem para confirmar aquele esquema empírico, e não se indaga nem as questões metodológicas para a pesquisa daqueles processos e nem as fissuras, descontinuidades, inconsistências, surpresas que eles colocam para o pesquisador.

É preciso ainda examinar a posição da democracia como condição necessária para a judicialização. C. Neal Tate afirma que

 

é difícil imaginar um ditador, independentemente de seu ou sua uniforme ou bandeira ideológica, 1. Convidar ou permitir mesmo nominalmente que juízes independentes aumentem a sua participação na feitura das decisões de políticas públicas mais importantes, ou 2. Tolerem processos de tomada de decisão que colocam a aderência a regras procedimentais legalísticos e direitos acima da realização rápida de resultados substantivos desejados21.

 

Porém, ele apresenta de modo demasiadamente simplificado as distinções entre regimes democrático e ditatorial, não contemplando as gradações e dificuldades que esses tipos de regime podem apresentar. Com isso, ele estabelece uma relação de necessidade entre democracia e relevância do Poder Judiciário, como se o fortalecimento do Poder Judiciário fosse uma conseqüência da democracia e só pudesse existir naquelas condições. Em outros termos, a efetividade do princípio majoritário seria condição para o modelo de decisão judicial e este somente se desenvolveria plenamente dentro daquele.

Dado que o modelo de decisão majoritário torna-se condição do modelo judicial, a sua relação não é mais a de pontos extremos de uma escala. Então, o processo de judicialização não é mais da ordem do deslocamento entre dois pontos extremos da escala, que estariam em relação de independência, pois criados como tipos pelo próprio pesquisador. Ele se torna da ordem de uma mudança nas relações entre um fator condicionante (a democracia, o modelo majoritário) e um fator condicionado (as cortes, o modelo judicial). A tese torna-se, então: dadas as condições de uma democracia estável, o modelo judicial se desenvolve quase como um parasita do modelo majoritário para, no fim, usurpar a sua posição, e substituí-lo em prol de seus princípios, métodos e centros de decisão. A capacidade preditiva do modelo é posta em xeque se o Judiciário for investido de poderes políticos relevantes em regimes não-democráticos ou se neles os juízes usarem ativamente seus poderes de decisão, mesmo contra a orientação predominante nas instituições governamentais (não necessariamente majoritárias) ou valores e ideologias socialmente dominantes.

 

Política(s)

 

Em artigo anterior22, elaborado com Débora Alves Maciel, examinou-se a ambigüidade com que é utilizado o termo “judicialização”, que se refere:

 

a mudanças institucionais, que podem se tratar de ampliação de competências, de novas formas de organização, de procedimentos etc; a estratégias, orientações dos sujeitos, que podem ser tanto o chamado ativismo dos juízes como o dos outros agentes jurídicos; a processos sociais mais amplos nas democracias contemporâneas (juridicização das relações sociais; colonização do mundo da vida etc.).

 

Os autores não definem em quais sentidos a política seria judicializada. Eles se referem a decisões que deveriam ser deixadas às instituições majoritárias, por serem de interesse dos cidadãos em seu conjunto. Pode-se delinear por exclusão o âmbito dessas decisões, pois eles definem o domínio das cortes como o da decisão sobre casos individuais, para a proteção dos direitos fundamentais. Assim, todas as demais questões de interesse comum caberiam à decisão majoritária. No entanto, essa separação simples teria sido obscurecida pela política de direitos, e as delegações, pelas instituições majoritárias, de seus poderes de decisão sobre questões coletivas aos juízes, as quais transformariam questões políticas em jurídicas. Mas eles não discutem quais seriam os limites dessas declarações e delegações, por exemplo, se alguma política de direitos teria implicações positivas para a democracia ou se alguns tipos de decisão sobre interesses coletivos (defesa e segurança nacional, por exemplo) seriam imunes à judicialização.

O modelo preditivo dá outras indicações sobre os sentidos em que a política seria judicializada: nas democracias contemporâneas, haveria a delegação expressa de poderes de decisão política aos juízes, a política de direitos converteria conflitos de interesses em questões jurídicas e os juízes ativistas tomariam partido dessa situação para avançar suas preferências políticas. Assim, pode-se apreciar a tese da judicialização, analisando-se se poderes politicamente relevantes de decisão dos juízes ocorrem especificamente nas democracias, se a delegação desses poderes é um fenômeno recente e se o ativismo dos juízes é uma questão contemporânea. Essas questões são analisadas a seguir, tomando-se os diversos sentidos de “política” em inglês como fio condutor. Ver-se-á que o termo judicialização designa fenômenos que não são novos e nem sempre controversos.

1. Política pode ser considerada a polity, ou seja, comunidade política ou Estado, a unidade territorial dotada de uma organização auto-referida, com um “governo” que, detém a capacidade de ser a última instância de tomada de decisões e que ordena as relações sociais que se se encontram sob o seu escopo. Em outros termos, é o Estado, no sentido da teoria geral (Jellinek) ou, noutro registro, das teorias marxistas.

É possível falar aqui de judicialização da política? Trata-se de um fenômeno recente, vinculado ao ativismo dos juristas?

Evidentemente que não, “judicialização” da polity pressupõe não tanto a democracia, mas o próprio Estado moderno (para não se falar em outras épocas e espaços). Uma característica definidora do Estado moderno é a tendência ao monopólio do uso da força física legítima e, para isso, foi essencial a unificação, em esferas de decisão do próprio Estado, do território e dos sujeitos sobre os quais se exerce a jurisdição, das fontes normativas e das organizações capazes de mobilizar instrumentos de violência.

Embora esse processo seja variável ao longo do tempo e nos diferentes países, o que é evidente é que o Estado moderno formou-se a partir da sua capacidade de se sobrepor às formas de organizações concorrentes, que tinham a pretensão de formar espaços territoriais, ordens (nobres, religiosos e corporações do ofício, por exemplo) ou domínios concorrentes da vida social (direito canônico) etc. A concentração da jurisdição “judicial” no Estado implicava a criação de um corpo de juízes ativistas no sentido de que seu papel era afirmar a soberania do Estado sobre as pretensões de outras jurisdições e ordens normativas em seu território. Porém, este processo é marcado por conflitos, decorrentes de questões políticas de cada Estado (diversidade étnica, religiosa, lingüística), entre diversos princípios e fontes de direito (direito natural, direitos tradicionais, direito romano, legislação, isenções e privilégios), entre jurisdição e razão de Estado, entre governantes e juízes, com suas próprias origens sociais e adesões.

O Judiciário foi investido de poderes centrais para a defesa do Estado, desde a instituição dos Estados constitucionais contemporâneos. Nos Estados Unidos, isso se vê no poder reconhecido ao Judiciário federal para controlar a decretação, pelo chefe do Executivo, da suspensão do habeas corpus em tempo de guerra. O significado da exclusão do conhecimento judicial de questões políticas é questão bastante controvertida.

Assim, falar em “judicialização” da ordem política, ou da polity, implica colocar considerações sobre a conformação do Judiciário no processo de formação e vigência da ordem estatal, mas o termo novo não acrescenta grande coisa para compreender a questão23.

2. Política pode ser considerada como politics, ou as atividades que, no interior de uma ordem política, dedicam-se de forma especializada às atividades governamentais e suas relações com a sociedade. É a política, no sentido comum do termo.

Neste sentido parece haver alguma novidade. Vê-se no noticiário que decisões judiciais intervêm cotidianamente nas atividades políticas, o que dá a impressão de uma constante ação “externa” dos juízes sobre “os políticos”. Mas os autores afirmam que a democracia e a separação de poderes são condições para a judicialização e, assim, esta seria um fenômeno recente, que se expandiu junto com a extensão das democracias em muitos países do mundo ao longo da segunda metade do século xx.

A atuação dos tribunais na política já ocorria nas monarquias européias, nos confrontos entre o monarca, a aristocracia e o clero. Emblemáticos são os impasses recorrentes enfrentados pela monarquia francesa ao longo do século xviii, em episódios que estão associados diretamente à eclosão da Revolução Francesa. Os magistrados eram ativos participantes das intrigas palacianas, em sua condição de noblesse de robe, em virtude de sua competência técnica, de suas origens ou alianças sociais. Mas a sua intervenção “na política”, enquanto juízes, torna-se visível nos Estados contemporâneos, em que se separam Estado e sociedade civil, distribuem-se os poderes, especializa-se a política e forma-se, gradualmente, o Judiciário autônomo, com juízes especializados.

A criação de um Poder Judiciário com poderes de intervenção na política não tinha apenas a função de proteger as liberdades individuais. Os federalistas norteamericanos atribuíam ao Judiciário federal um papel de manutenção do equilíbrio geral dos poderes fixados pela Constituição. Um sistema constitucional que estabelecia a divisão e o exercício compartilhado da soberania implicava a adoção de uma forma de controle dos diversos poderes que não resultasse na supremacia do poder que exercesse o controle. Por essa razão o controle seria atribuído ao Judiciário federal, cujos integrantes não tinham poder de iniciativa, eram vinculados a procedimentos e não podiam agir segundo sua vontade, mas em nome da Constituição, não dispondo de controle sobre a força militar, de comando sobre os agentes e nem dos recursos públicos24. Ou seja, o equilíbrio da Constituição seria função do controle ativo dos juízes sobre os outros poderes políticos, o qual, ao invés de expressar a adesão à política majoritária, pressupõe o exame substantivo da compatibilidade entre as atividades e produtos da política e a Constituição25. Em outros termos, os juízes independentes são instituídos para intervir na(s) política(s), e essa intervenção é efetiva mesmo quando ocorre com pouca freqüência.

E, como lá, aqui nós temos, desde a primeira Constituição republicana, adotado o controle judicial da constitucionalidade de atos legislativos, e reconhecido outros poderes do Judiciário no campo do direito público. O modelo do controle das leis foi adaptado em países europeus a partir de meados do século xix, reforçado na Constituição austríaca de 1920 e expandido após a ii Guerra Mundial. Assim, a judicialização da politics confunde-se com a própria criação e consolidação do Estado constitucional contemporâneo, no qual a formação de um campo de atividades reconhecido como a política, diferenciado de outros, dentre os quais a atividade judicial, é coetânea à criação de sistemas de controle e de equilíbrios, nos quais foram atribuídos aos juízes poderes de controle sobre “a política”, e criadas modalidades complementares de controle sobre os próprios juízes (o julgamento pelo Senado de crimes de responsabilidade praticados por juízes, por exemplo).

Não é o caso de entrar em detalhes sobre esse assunto interessante, pois o objetivo é indicar que, se considerado como “judicialização da politics”, o termo não indica novidade e não acrescenta grande coisa; não nos auxilia, pois, a pensar as relações entre Judiciário e política.

3. Política no sentido de policy, ou seja, programas de ações públicas, definidas pelo legislador ou implementadas pelo governo em função das suas decisões. Este parece ser o campo privilegiado da judicialização, segundo o modelo apresentado por Tate26, das condições necessárias e facilitadoras para a judicialização. No plano comportamental, a judicialização seria desencadeada por juízes ativistas cujas orientações ideológicas sejam opostas às dominantes nas instituições majoritárias, em sistemas democráticos, que, ao atribuir-lhes poderes extensos e terem governos pouco efetivos, abririam oportunidades para a sua ação.

Aqui também se vê uma intensa ação cotidiana dos juízes e instituições judiciais, chamadas cotidianamente a decidir sobre as políticas públicas, o sentido dos direitos, tanto a sua limitação como a sua efetivação etc. Ora, se definimos as políticas não no sentido estrito de políticas sociais, mas no de todas os programas e ações governamentais, as instituições judiciais fazem parte de uma arquitetura que investe os juízes com papéis determinados de decisão. Ou seja, se o investimento na jurisdição judicial é um aspecto da polity, e se a extensão dos poderes dos juízes é uma dimensão da politics, o exercício da jurisdição é o da implementação, segundo um modelo de decisão particular, de policies. Tanto porque os juízes cotidianamente examinam, controlam, interpretam e implementam planos de ação governamentais quanto porque, nas democracias constitucionais contemporâneas determina-se que os conflitos sejam traduzidos em litígios sobre violações de direitos, que serão decididos segundo um determinado modelo, por agentes com determinadas características (juízes profissionais, com garantias e vedações etc., ou processos administrativos com recurso para o Judiciário). Enquanto delegados estatais, os juízes foram investidos do poder de implementar policies, segundo os métodos de decisão que lhes são próprios. Os processos contemporâneos dão continuidade a essa forma de investidura, agora desprovida de limitações procedimentais mais antigas, mas não a ponto de configurar uma mudança nas relações entre maioria legislativa e juízes. Os papéis atribuídos às instituições judiciais são mutáveis ao longo do tempo e nos vários países, e não é adequado tomar-se uma determinada distribuição de papéis –a do Judiciário árbitro dos conflitos civis no estado liberal do final do século xix– como modelo para avaliar todos os demais.

A expansão da litigiosidade é muitas vezes tomada para evidenciar a judicialização. No entanto, trata-se de fenômeno complexo, relacionado, em nossos países, com a democratização, a urbanização, a precariedade dos direitos sociais, os conflitos políticos, a privatização dos serviços e bens públicos promovida por reformas neoliberais etc. Não pode servir de critério para afirmar que há um maior protagonismo do Poder Judiciário, pois é, no máximo, um índice da sua ativação.

4. No sentido de ação, estratégica ou voltada à promoção de valores, o termo judicialização seria ainda mais fluído e incerto, pois não é recente e nem se pode dizer que seja crescente (ou decrescente), se tomamos um quadro mais amplo de observação do que o que ocorre no nosso país nos últimos anos. A ativação do Poder Judiciário por grupos sociais é um processo associado à luta política e à mobilização cívica, ou por interesses. Neste tema, é importante não considerar apenas a ativação do Judiciário por movimentos populares, que buscam a promoção de direitos sociais ou culturais, mas também o seu uso por grupos econômicos ou elites políticas. Afinal, os instrumentos e recursos proporcionados pelo Judiciário são bastante relevantes e não são desprezados pelos que deles podem lançar mão.

Esse sentido da judicialização da política é, pois, bastante variável, uma vez que depende de muitos fatores, como o quadro normativo, condições sociais e econômicas (crise ou reformas econômicas de grande alcance), a conjuntura política, as estratégias e valores dos agentes que buscarem promovê-los junto ao Judiciário, assim como a apreciação que eles tenham da probabilidade de sucesso de sua atuação judicial. Deve-se considerar que a atuação judicial é uma entre outras ações promovidas pelos agentes sociais, as quais permanecem enquanto corre o processo judicial. Assim, a ação judicial pode ser apenas um recurso auxiliar no conjunto das estratégias dos agentes sociais, e sua relevância é relativa às relações dinâmicas entre esses agentes, que se dão nesse conjunto mais amplo de ações. Para tratar desse tema, tem sido utilizada pela bibliografia internacional o termo “mobilização legal”, ou “mobilização do direito”, que trabalha a ativação do Judiciário pelos grupos sociais do ponto de vista específico de suas estratégias e relações27.

As ilustrações mostram que os juízes têm relevância política em situações diversas da democracia, que, segundo o modelo da judicialização da política, seria pré-condição para tal. A investidura de juízes, com poderes sobre questões cruciais para a estabilidade da ordem política, identifica-se com a própria formação dos Estados modernos. Outras atribuições de poderes encontram-se já na formação dos Estados constitucionais contemporâneos. A investidura na função de julgar é indissociável da apreciação do papel a ser desempenhado pelos juízes na promoção de políticas estatais. Juízes receberam atribuições para a promoção de políticas estatais, sem que tenham sido idealizados como árbitros passivos dos litígios individuais. Os magistrados foram ativos agentes de intrigas políticas, voltaram-se à promoção, ou, pelo contrário, à resistência a políticas do governo central, e por vezes se engajaram na proteção e promoção de direitos em situações oligárquicas e autoritárias.

Assim, embora a expressão “judicialização da política” tenha pretensão de servir para caracterizar uma expansão global do Poder Judiciário, ela é inútil, porque não permite distinguir as diversas dimensões das relações do Poder Judiciário –e das instituições judiciais e agentes jurídicos como um todo– com “a política”.

De um modo geral, a fluidez conceitual sobre o sentido de política não é surpreendente, dadas as relações constitutivas do Judiciário com a ordem política e a extensão de poderes atribuídos aos juízes nas democracias constitucionais contemporâneas. Seria mais realista partir da constatação de que não há a possibilidade de fixar um traçado geral da “província” de questões próprias às cortes. Mas, com isso, não se teria referência fixa a partir da qual se poderia afirmar um processo de expansão do Poder Judiciário.

 

Exemplos a partir do judiciário brasileiro

 

Os autores colocaram a democracia como uma pré-condição para a judicialização da política. No entanto, o protagonismo político dos juízes não é fenômeno recente e nem é exclusivo de períodos de democracia. Apresentam-se a seguir exemplos das múltiplas relações entre o Judiciário brasileiro e a(s) política(s).

No Império, o Judiciário era considerado parte da ordem política global e sua atuação se dava em função desta.

– Os magistrados imperiais eram, por excelência, os agentes da ordem política, dada a sua atuação como juízes (e, pois, agentes da ordem), como representantes políticos e como administradores (chefes de polícia, presidentes de província). Deve-se compreender bem: não só porque inexistiam as vedações constitucionais à atividade política dos juízes, mas porque os próprios dirigentes políticos imperiais consideravam correta essa participação dos juízes na política. Sua atuação situa-se no cerne da política do Império, mas eles divergiam sobre a extensão dos poderes do centro político do Império sobre o território. Uma questão de direitos fundamentais de cidadania cinde os juízes tanto quanto os partidos políticos: os direitos dos escravos. O ativismo de juízes do Império é vasto, como a sua atuação contra a direção política do Imperador e a extensão da capacidade do centro político do Império, contra a extensão do poder civil sobre o eclesiástico, intervindo em questões de política externa, ao resistirem à repressão ao tráfico de escravos depois de 1850.

– Algumas das políticas mais relevantes no período imperial foram atribuídas aos magistrados e promotores, como a implementação da Lei de Terras e da Lei do Ventre Livre. Essa atuação não é surpreendente quando se tem em mente que essas carreiras eram tudo o que havia no país como esboço de burocracias públicas. O ativismo dos juízes era aqui necessário nos dois sentidos, seja para superar as limitações e contradições que haviam sido postas nos textos das leis pelos representantes dos proprietários, a fim de implementar a política do governo central contra as resistências dos proprietários quanto, por motivos práticos ou de princípio, resistir àquela política em favor desses interesses. Em outros termos, o ativismo dos juízes era um elemento relevante para o sucesso ou o fracasso de duas políticas públicas fundamentais para a formação da sociedade brasileira contemporânea.

– A ativação do Judiciário por movimentos populares para fazer valer seus direitos e a receptividade de uma parte dos juízes a essas demandas não começou ontem. Indivíduos pobres, livres, libertos ou mesmo escravos, não estavam presentes em processos judiciais apenas como sujeitos passivos (réus) ou como objetos (escravo-coisa) dos processos. Não era incomum que eles ativassem o Judiciário para defender ou promover seus direitos. Uma parte importante da história do direito e do Judiciário no Brasil é a da atuação de movimentos pela abolição em conjunto com rábulas e advogados para promover a libertação de escravos.

Foram utilizadas referências ao período imperial para ilustrar a “judicialização” nos quatro sentidos da política tratados acima. O Judiciário centrado na resolução de casos individuais, na proteção passiva das liberdades negativas reconhecidas aos já cidadãos, é a parte da história do conservadorismo político, engajado na limitação do alcance de medidas legislativas do poder central que visassem promover mudanças sociais no país. A outra parte é a de um engajamento ativo na concretização de políticas, em nome da proteção dos direitos fundamentais e liberdades de todos (incluídos os reduzidos à escravidão e outras situações análogas), com o se qual buscava transbordar os limites de medidas que resultavam de uma maioria político-parlamentar precária.

Ilustrações de protagonismo político do Judiciário podem ser encontradas em outros momentos da nossa história: basta lembrar a atuação do stf nos conflitos entre oligarquias políticas na Primeira República e na limitação da repressão do governo federal aos movimentos oposicionistas, na limitação dos poderes da administração pública durante o Estado Novo ou nos habeas corpus em favor dos presos militares após 1964. Ou, por outro lado, as atribuições administrativas que os juízes ainda hoje têm, seja como fiscais externos de atos administrativos, seja no controle de direitos indisponíveis, seja, ainda, como responsáveis pela administração de um dos poderes do Estado.

Mas é interessante fazer referência a duas instituições características do Judiciário brasileiro que indicam as suas relações intrínsecas com a construção da ordem política democrática e voltada à realização da justiça social em nosso país.

A Revolução de trinta é considerada como o marco que fixou as bases do Estado brasileiro contemporâneo, a partir da qual a política foi nacionalizada, no sentido do reconhecimento do papel do Estado na promoção de determinados valores e de que os partidos e grupos sociais deveriam organizar-se tendo o conjunto do país como base territorial e como âmbito das ações que visavam promover. A partir dela foram definidas as características e funções do Estado com a qual: foi redefinido o pacto federativo, com o fortalecimento dos poderes e atribuições da União; foram criadas as instituições que permitiram a formação de uma política eleitoral competitiva, em termos nacionais; as relações entre os poderes, foram reconhecidos poderes ativos do poder Executivo, cabendo ao legislativo controlar e limitar a utilização daqueles poderes; o papel dirigente do Estado na economia, pois foram criados órgãos técnicos e colegiados que permitiram ao Executivo planejar e investir na economia, bem como arbitrar os interesses econômicos divergentes; seu papel no reconhecimento de direitos sociais, com o desenvolvimento de políticas e de burocracias públicas federais voltadas à defesa e promoção de direitos sociais.

Entre essas criações estão a Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho. Examinemse, brevemente, o seu significado e seu papel. Em primeiro lugar, a Justiça Eleitoral. “Representação (ou verdade eleitoral) e Justiça” era a palavra de ordem da revolução de trinta, e referia-se à necessidade de promover reformas que garantissem a verdade das eleições, que seria garantida pela organização do processo sob a responsabilidade de um Judiciário independente. Esse tema apresenta um duplo aspecto: por um lado, o fato de que o Poder Judiciário não é um agente que limita exteriormente uma dinâmica de competição política sem regras entre grupos que procuram a representação popular. Pelo contrário, atribui-se ao Poder Judiciário o papel de organizar as eleições para que elas sejam competitivas, cuidando de todas as suas etapas, como se sabe: desde o alistamento até a proclamação dos eleitos. Assim, a justiça eleitoral funciona como um verdadeiro órgão administrativo das eleições (organização, fiscalização etc.), exercendo também poderes (quase) legislativos, dado o poder normativo de que dispõem os tribunais eleitorais e os poderes tipicamente jurisdicionais. Isso é conhecido por todos, mas não se reflete sobre o seu significado: de que o Poder Judiciário –ou as instituições judiciais como um conjunto– são partes inerentes da criação de uma ordem política (polity) democrática competitiva no Brasil. Assim, a Justiça eleitoral não é um agente externo que exerce poderes quase que usurpados sobre os políticos e as eleições; ela exerce um poder que lhe foi atribuído desde a Revolução de trinta e que foi reafirmado em todas as constituições, democráticas ou não, desde então. Seu papel não é apenas proteger passivamente os direitos políticos, mas o de criar as condições institucionais para o exercício daqueles direitos em condições compatíveis com a democracia política.

Por outro lado, o Poder Judiciário independente não existia em 1930. O que havia era uma justiça federal precária e os Judiciários estaduais engajados na política oligárquica, sendo que as garantias da magistratura eram reconhecidas em apenas alguns estados. Assim, um dos resultados da Revolução de 1930, e da Constituição de 1934, é a fixação das bases da independência do Poder Judiciário e das garantias da magistratura. Deste modo, o Judiciário é instituído como um poder independente de uma ordem política competitiva e promotora de objetivos nacionais, econômicos e de direitos sociais. Em outros termos, as bases da independência do Poder Judiciário estão no próprio movimento e processo político que redefiniram o Estado brasileiro contemporâneo. Assim, os papéis de que é investido e o exercício de suas funções devem ser considerados, pelo analista, em função dessa instituição política e não de um modelo do que deve ser o Poder Judiciário numa sociedade liberal abstrata.

A criação da Justiça do Trabalho também pode ser analisada sob esse prisma. À primeira vista, teríamos no Brasil um exemplo de judicialização precoce das relações de trabalho. Mas a adoção –em bases nacionais– de um modelo legislado de relações de trabalho, se não teve efetividade imediata, fixou bases normativas que projetaram as formas legítimas das relações de trabalho e, assim, criou as condições institucionais para o mercado de trabalho contemporâneo no país. E à Justiça do Trabalho, junto com os órgãos administrativos, coube o papel de implementar essa política social. Tanto pelos seus poderes jurisdicionais como o seu papel de supervisão das condições de trabalho, de mediação dos conflitos e de fixação das normas coletivas de trabalho. A história da Justiça do Trabalho confunde-se com a própria criação da legislação trabalhista e sua dinâmica de institucional reflete as políticas públicas para os direitos trabalhistas. Veja-se o papel da Constituição de 1988 na ampliação da Justiça do Trabalho e as iniciativas para limitá-la nos anos noventa. A Justiça do Trabalho resulta de uma crítica à concepção do juiz passivo e neutro, do positivismo legalista e do processo “dualístico”, presentes no modelo liberal-conservador predominante até então. Ou seja, a Justiça do Trabalho tornase o protótipo para um Judiciário adequado à ordem competitiva e democrática que então se procurava inaugurar.

Assim, esses exemplos mostram que é necessário tratar o Poder Judiciário do ponto de vista da ordem política como um todo e não como um poder dotado de certas características, definidas a partir de um modelo abstrato.

Dada a história das relações entre poder político e instituições judiciais no Estado brasileiro contemporâneo, é discutível estabelecer uma relação unívoca entre, por um lado, a democracia e, por outro lado, o Poder Judiciário relevante. Após a Revolução de trinta, a instituição de juízes como responsáveis por decisões políticas relevantes é o resultado de decisões políticas, tomadas por lideranças de uma revolução política predominantemente anti-liberal, que acabou por institucionalizar uma democracia competitiva e criar espaços de resolução de conflitos sociais. Ou seja, os poderes políticos do Poder Judiciário brasileiro não foram produzidos pelo ativismo de juízes que buscavam substituir os representantes eleitos. Aqueles poderes, mas também as limitações e fraquezas das instituições judiciais são resultado tanto de processos democrático-liberais quanto de períodos autoritários.

Essas indicações se tornam mais evidentes quando se considera o fortalecimento significativo das instituições judiciárias pela Constituinte de 1946, que investiu, ao mesmo tempo no Judiciário central (stf) e no dos estados, mas também excluiu os poderes jurisdicionais da administração federal. Por sua vez, depois de 1964, os governos militares limitaram os poderes do Judiciário em questões de defesa do Estado e de intervenção na política levada a cabo pelos militares, mas, por outro lado, procuraram fortalecer os poderes do Judiciário central, especialmente depois da Reforma Constitucional n.º 7, de 1977. Os militares fortaleceram os poderes do stf para o controle de decisões do Congresso, e os poderes do tse para a condução do processo eleitoral. Buscaram criar instrumentos de controle sobre os Judiciários estaduais e reconstituir a jurisdição no âmbito da administração pública. Assim, era um Judiciário com poderes limitados mas fortalecido institucionalmente que emergia do regime autoritário, com atribuições para intervir no processo político e orientar todo o processo eleitoral. Em outros termos, se não era provável a proliferação de juízes ativistas, a consolidação de uma burocracia judiciária com poderes de intervenção política era um aspecto central do regime autoritário.

 

Um quadro para análise do poder judiciário

 

As observações que seguem procuram traçar um quadro analítico para tratar o Judiciário do ponto de vista da ordem política. O objetivo é formular uma abordagem que considere as características do Judiciário nas democracias constitucionais contemporâneas mas que não adote como quadro conceitual as teorias elaboradas pelos juristas.

Como é usual na análise de instituições, não há um conjunto definido de traços com os quais se possa identificar as características próprias ao Poder Judiciário. Aquilo que poderia definir sua atuação –a decisão de litígios individuais de acordo com a lei, tendo em vista a proteção dos direitos individuais– não é, em vários países, atribuição exclusiva do Judiciário. Mas a definição deixa de fora muitas das atividades mais importantes e características do Judiciário, como a resolução de litígios coletivos e a produção de normas gerais. Uma perspectiva pragmática parece ser mais adequada –identifica-se o Judiciário pelo que os juízes fazem, segundo as leis e a sua prática num determinado Estado. Porém essa perspectiva tem limites, na medida que restringe o campo de observação, tomando como ponto de partida a forma atual das instituições, que permite analisar a dinâmica interna do Judiciário, mas é parcial para analisar as relações com o seu “exterior” e as suas especificidades historicamente constituídas.

Parte-se do termo polivalente “jurisdição” para a apresentação da perspectiva e o quadro analítico proposto. Em seu sentido28, jurisdição refere-se, por um lado, à ordem estatal como um todo, como um atributo do Estado soberano, tanto do ponto de vista externo, o seu reconhecimento como sujeito da sociedade internacional, como interno, a autoridade para fixar as regras das relações sociais ocorrentes no seu território. Daí que o termo é sinônimo de competência, autoridade ou poderes de órgãos ou agentes estatais (sua jurisdição compreende certo território, domínio etc.). Por outro lado, jurisdição refere-se ao poder delegado para determinar o sentido da lei, resolvendo litígios. Daí estão associados os significados dos tribunais em seu conjunto, os seus agentes (chefe de jurisdição), determinado âmbito ou tipo de competência (jurisdição civil ou administrativa, jurisdição sobre uma determinada comarca, jurisdição privilegiada, jurisdição de exceção), extensão dos poderes dos juízes (jurisdição plena ou restrita), forma do processo (jurisdição graciosa ou contenciosa). No estado de direito, para se garantir os direitos por meio de julgamentos imparciais, essa forma de “jurisdição judiciária” tem extenso campo de aplicação e características particulares, como a separação de poderes, as formalidades processuais, as prerrogativas e vedações dos magistrados etc.

Nos Estados modernos, o tendencial monopólio da força física legítima sobre o território significou a unificação, pelas instâncias de decisão do Estado, das fontes normativas e das organizações capazes de mobilizar instrumentos de violência. A jurisdição “judicial” é a investidura de uma parcela daquela capacidade para determinadas autoridades para que exerçam os seus poderes sobre um conjunto determinado de litígios (conflitos “civis” persecuções penais), sob formas e condições estabelecidas. Para isso, adotam-se determinados arranjos institucionais que impõem aos conflitos a forma de oposição entre direitos, e que assumem assim a forma de litígios a serem decididos, com as garantias do devido processo legal, por um juiz imparcial, segundo o direito.

Nas democracias constitucionais contemporâneas, a delimitação entre jurisdição “geral” e jurisdição “judicial” torna-se menos precisa. A ordem política adota a forma de comunidade política instituída, regulada e voltada à realização do direito. A jurisdição judicial continua como uma forma especial de investidura mas os seus papéis na ordem política são muito mais amplos, incluindo a garantia da ordem constitucional, das condições da democracia política, do pluralismo e a efetividade do princípio do direito nas relações políticas e sociais. Eliminaram-se restrições à jurisdição judiciária, baseadas em prerrogativas, domínios reservados para o exercício da autoridade; modificam-se os processos judiciais, que admitem sujeitos coletivos, objetos abstratos e decisões com efeitos gerais, para garantir o acesso de todos e controlar abusos do poder político e econômico. Generaliza-se a forma do “devido processo legal” para a tomada de decisão na administração pública. Criam-se agências autônomas e especializadas para tratar as áreas da regulação da economia e os conflitos sociais, com importantes papéis na prevenção e resolução de litígios. Adotam-se compromissos internacionais de caráter jurídico e com efeitos vinculantes, cuja efetivação pelas autoridades nacionais, é controlada pelos próprios juízes dos Estados. Desenvolvem-se as técnicas de interpretação sistemática e teleológica do direito baseado em princípios do estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais. Tudo isso indica, em suma, que não há critério claro para delimitar a jurisdição judicial e a jurisdição “geral” nos Estados constitucionais contemporâneos.

Ao mesmo tempo, os Estados desenvolveram historicamente grande variedade de formas institucionais, como um todo, e também para o Poder Judiciário. Embora haja importantes tendências de convergência, devido à integração regional, à internacionalização do direito etc, a diversidade é ainda bastante saliente. Assim, definem-se a seguir dimensões de análise que tratam da distribuição da jurisdição entre o Poder Judiciário e outras instâncias estatais de tomada de decisão. O objetivo é reconhecer as formas pelas quais a maneira essa distribuição permite que o Judiciário independente proporcione a proteção dos direitos dos cidadãos, mas também torne efetiva a democracia constitucional, por meio de processos de tomada de decisão coordenados com os de outras instituições estatais e agentes políticos e sociais.

 

Duas dimensões gerais

 

Para analisar o Poder Judiciário adotam-se duas dimensões, associadas aos sentidos da jurisdição: a política judiciária e a produção normativa do Estado29.

 

Política judiciária

 

O Poder Judiciário pode ser considerado do ponto de vista de um tipo particular de organização do poder político, que exerce a “jurisdição judicial”, uma investidura ou delegação do poder de tomada de decisão estatal. A criação de um Judiciário independente tem uma série de implicações que podem ser consideradas como a organização dos tribunais, do corpo de magistrados e a direção do Judiciário.

Assim, a política judiciária pode ser considerada em termos de organização dos tribunais, procedimentos e pessoal30. O exercício da jurisdição pode ser mais ou menos monopolizado, segundo ele seja exercido exclusivamente por membros do corpo de magistrados. Será homogêneo que este seja unitário ou dividido, e segundo linhas de especialização, organização territorial ou funções dos agentes judiciais no processo.

A instituição de um Poder Judiciário independente é indissociável da autonomia dos juízes, uma vez que este é o próprio objetivo daquele. Mas os termos não são sinônimos e, ao contrário, podem revelar-se conflituosos. A autonomia dos juízes envolve, além das condições para a sua atuação nos processos judiciais, suas prerrogativas e vedações pessoais, a sua participação na organização a que pertencem, em particular suas relações com a direção do Judiciário. Assim, a autonomia dos juízes implica a dissociação formal entre a organização dos tribunais, a direção administrativa do Judiciário e o governo dos juízes. Isso significa que a relação entre os juízes de primeira e de segunda instância no exercício da jurisdição não é hierárquica. A direção do Judiciário (administração da justiça e governo dos juízes) pode ser atribuição de um ou mais comitês, no âmbito do próprio Judiciário ou como agência independente, nos quais os juízes profissionais são majoritários (direção autônoma), ou organizados no âmbito de outros poderes do Estado, em geral um órgão do Poder Executivo, em comitês nos quais os juízes profissionais têm participação secundária (direção heterônoma).

A direção heterônoma compreende o governo dos juízes, a administração do Judiciário ou os dois fatores. Quando a direção é autônoma, pode haver a coincidência ou a distinção entre os três elementos. O determinante para a autonomia dos juízes é a concentração de segunda instância e governo dos juízes; o determinante para a independência do Judiciário é a autonomia no governo dos juízes e direção do Judiciário.

 

Produção normativa

 

Com modelo próprio de decisão dos casos, a “jurisdição judicial” participa, da produção normativa da ordem constitucional31. Indicam-se a participação na preservação da ordem constitucional democrática, que compreende a defesa do Estado de direito e a organização da democracia competitiva.

O Judiciário participa da formulação de normas gerais, seja por atribuições próprias de caráter normativo ou consultivo, seja pela participação de juízes individuais nos processos de decisão das instituições majoritárias.

O Judiciário atua na prevenção de litígios, em que as instâncias judiciais se articulam com outras agências, para ou extra-judiciais, para elaborar regras e resolução de litígios privados, cabendo ao Judiciário a supervisão do processo decisório, a fim de assegurar o respeito aos direitos e garantias constitucionais.

Enfim, a produção normativa compreende as decisões na resolução de litígios judiciais propriamente ditos, em que instâncias judiciais têm atribuições específicas de tomar decisões de anulação de normas legais ou regulamentares, com efeitos gerais, ou, alternativamente, de generalizar decisões tomadas em casos individuais, transformandoas em normas judiciais de efeitos vinculantes, ou ao menos de conhecimento amplo entre juízes e administradores. E, ainda, por processos do tipo das garantias constitucionais, que permitem o acesso amplo ao Judiciário, o qual é capaz de produzir decisões imediatas com efeitos gerais.

A esse respeito é relevante considerar, por um lado, os efeitos das decisões judiciais e, por outro, os poderes do juiz no processo, direção dos atos processuais e a abertura do processo judicial à diversidade de auto-compreensão normativa dos sujeitos, que levam a diferentes maneiras de construção do conflito e de tomada de decisão. O Judiciário brasileiro tem atuação relevante nesses campos, e o objetivo é indicar a maneira pela qual sua ação é coordenada com outros poderes do Estado e atores sociais.

O quadro proposto limita-se a tratar as relações entre a ordem política e o Judiciário, que permitam analisar aquelas dimensões institucionais de uma perspectiva comparada. Não se pretende, com ele, formular um roteiro voltado à explicação dos formatos historicamente assumidos pelo Judiciário em uma dada sociedade e nem abordar a dinâmica institucional, particularmente a análise das decisões judiciais.

Poder-se-ia finalizar com um roteiro de questões a serem consideradas para levar em conta as transformações do Judiciário brasileiro contemporâneo, o qual deveria comportar: 1. Como quadro analítico geral e não esquema explicativo pré-definido, as características macro-sociológicas da sociedade, a formação social, num sentido marxista: a estrutura da produção, a conformação das classes sociais, as relações entre elas; 2. As suas formas de organização política, tais como o modelo de Constituição, as relações entre os poderes, a federação, as relações entre o Estado e a economia; 3. As suas tendências globais de desenvolvimento, isto é os processos históricos pelos quais se conformou aquela estrutura de classes e estas formas de organização política; 4. As conformação específicas das instituições judiciais e dos atores jurídicos: sua forma de organização, os padrões de socialização e carreira, as suas práticas e técnicas, as regras que se consolidaram, as posições políticas e teóricas que são adotadas em torno de temas internos e externos ao campo propriamente judicial. Em termos mais específicos, para compreender as instituições judiciais hoje é preciso considerar o quadro da crise do Estado desenvolvimentista e das reformas orientadas ao mercado que lhe seguiram, a estrutura constitucional de 1988, com suas mudanças posteriores (incluídas as tensões entre elas), e seus efeitos para as instituições judiciais, assim como as funções e o papel dos juristas, tanto nas suas relações internas como nas relações com o sistema político e com a sociedade mais ampla.

 

Conclusão

 

A judicialização da política é um nome atribuído a partir do início dos anos noventa ao protagonismo político de juízes, o qual não representava qualquer novidade e não tinha implicações fundamentais para as democracias contemporâneas. Uma exploração dos sentidos desse termo nos diversos países revela que ele é utilizado para se referir a questões muito distintas, como o poder de investigação criminal dos juízes italianos no processo das mãos limpas, a expansão da jurisdição administrativa na Inglaterra, as reformas do sistema judicial na Suécia, os conflitos sobre direitos na América Latina, a adoção de modelos de democracia constitucional nos países póscomunistas da Europa orientais etc.

Entre nós, o início de pesquisas em ciência política e sociologia sobre o Poder Judiciário brasileiro no começo dos anos noventa coincidiu com um contexto político marcado pela tensão entre a ampliação de suas atribuições na Constituição de 1988, continuidade organizacional e de quadros e uma agenda de reformas liberalizantes que se voltou contra a Constituição e um possível protagonismo dos juízes.

A expressão foi incorporada pela linguagem acadêmica, pauta a agenda de pesquisas e tornou-se de uso corrente. O presente artigo tentou questionar esse prêt-àpenser, que se apresenta como um atalho aparentemente simples, que permite formular diretamente questões polêmicas sobre a atuação dos juízes sobre as políticas públicas sob a democracia constitucional pós-1988. Com base na análise apresentada, conclui-se que a expressão judicialização da política é teoricamente inválida, porque apresenta deslizes conceituais, ao simplificar as relações entre os tribunais e a política, revelando uma concepção estreita da jurisdição e do direito; ela representa uma abordagem parcial e enviesada sobre as transformações dos Estados contemporâneos e, enfim, ela apresenta ambigüidades sobre o seu campo de aplicação, as relações entre Judiciário e política, o que a torna analiticamente inútil.

Procurou-se no final fixar um quadro analítico para a pesquisa do Poder Judiciário, que seja capaz de levar em conta as suas amplas atribuições nas democracias constitucionais contemporâneas, mas que não adote as interpretações formuladas pela teoria constitucional. Esse quadro deverá viabilizar uma pesquisa sobre o Judiciário brasileiro em perspectiva comparada, a fim de se identificar aspectos particulares em que as nossas instituições judiciais padecem de limitações para a proteção de direitos de cidadania e a efetivação da democracia constitucional. O resultado político depende da maneira pela qual as participação na política judiciária e as formas de produção normativa interagem com as outras instituições estatais e os atores sociais. A comparação de diversos países permitirá avaliar os limites atuais do Judiciário brasileiro, e os potenciais resultados das reformas em curso.

 

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1 A ser publicado en Luís Eduardo Pereira da Motta e Maurício Mota (eds.). O Estado democrático de direito em questão: Teorias Críticas da Judicialização, Rio de Janeiro, Elsevier, 2011.

* Professor do Depto. de Ciência Política do ifch-Unicamp, coordenador do Grupo de Pesquisas sobre Política e Direito (gpd-Ceipoc-Unicamp) e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas sobre os Estados Unidos (do ineu-cnpq).

** Mestre em Ciência Política pelo ifch-Unicamp e pesquisadora do gpd-Ceipoc-Unicamp.

*** Mestre em Ciência Política pelo ifch-Unicamp e pesquisadora do gpd-Ceipoc-Unicamp.

2 Chester Neal Tate e Torbjorn Vallinder. The global expansion of judicial power, New York, New York University Press, 1995.

3 Ídem.

4 Ibid., p. 13.

5 Tate e Vallinder. The global expansion of judicial power, cit., p.14.

6 Ibid., p. 15.

7 Ibid., p. 24.

8 Ibid., pp. 19 a 23.

9 Ibid.

10 Tate e Vallinder. The global expansion of judicial power, cit., p. 33.

11 Ibid., p. 36.

12 Chester Neal Tate. “Judicialization and the future of politics and policy”, em Chester Neal. Tate e Torbjorn Vallinder. The global expansion of judicial power, New York, New York University Press, 1995, p. 527.

13 A investidura caracteriza o investimento político nesse papel institucional, e não se confunde com a concepção idealizada das funções e da prática dos juízes com fins normativos.

14 Isso não significa que as decisões dos juízes não tenham dimensões projetivas e preventivas, mas essas são conformadas pelos constrangimentos dos papéis para os quais eles foram instituídos.

15 Guillermo O’Donnell. “Teoria democrática e política comparada”, Dados 4, vol. 42, 1999.

16 Para desenvolvimentos elaborados sobre esse tema, ver David Beetham. Democracy and Human Rights, Londres, Polity Press, 1999 e Stephen Holmes. “Precommitment and the paradox of democracy”, em Jon Elster e Rune Slagstad. Constitutionalism and democracy, Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

17 Isso pode ser visto de forma típica nos trabalhos, contrapostos sob aspectos fundamentais, de Kelsen e Carl Schmitt. Para Kelsen, a decisão judicial é criadora de norma individual, na qual estão presentes, por um lado, o aspecto da aplicação da norma superior que habilita o órgão inferior a emitir a norma individual (a sentença) e, por outro lado, o ato de vontade do sujeito habilitado a emitir a norma individual. Como há um ato de vontade, a norma inferior não pode ser completamente determinada pela norma superior. Em Carl Schmitt o gap entre a norma geral e a norma individual, o qual sempre é mediado pela decisão, não havendo, pois, determinação. Contemporaneamente, vale citar trabalhos de teoria e sociologia do direito a respeito da produção normativa, como os de André-Jean Arnaud, de Jacques Commaille e Bruno Jobert, de Boaventura de Sousa Santos, ou de François Ost & Michel van de Kerchove. Eles mostram como a estrutura conceitual da teoria do direito torna o direito estatal permeável a processos sociais e políticos e, pois, como a produção normativa não se cinge aos espaços institucionais do Estado, nem às instâncias formalmente legitimadas para a sua produção.

18 Ver o modelo de decisão judicial em Friedrich Muller. Métodos de trabalho do direito constitucional, São Paulo, Max Limonad, 2000 e Peter Haberle. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta, Porto Alegre, Sérgio A. Fabris, 1997.

19 Tate e Vallinder. The global expansion of judicial power, cit.

20 Ver Gillmann, Howard. “The court as an idea, not a building (or a game): interpretative institutionalism and the analysis of Supreme Court decision-making”, in Cornell Clayton e Howard Gillman. Supreme Court decision-making: new institutionalist approaches, Chicago, Chicago University Press, 1999.

21 Tate e Vallinder. The global expansion of judicial power, cit., pp. 28 e 29.

22 Débora Alves Maciel e Andrei Koerner. “Sentidos da judicialização da política: duas análises”, Lua Nova, n.º 57, 2002, pp. 113 a 134.

23 Aliás, poderíamos, num exercício paradoxal, falar que, nos últimos tempos teria havido uma desjudicialização da polity (ou pelo menos das suas pré-condições), se considerarmos que a globalização teve como efeitos a expansão da produção normativa internacional, o reforço da lex mercatoria,o fortalecimento de instituições multilaterais com poderes jurisdicionais ou quase-judiciais. Mas a emergência dessas instâncias poderia significa a judicialização da ordem internacional. Evidentemente, essa é só uma observação e não valeria a pena seguir por essa via.

24 Ver James Madison, Alexander Hamilton e Jhon Jay. “O Federalista”, em (vv. aa.). Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1979, especialmente o cap. 78, e Bernard Bailyn. As Origens ideológicas da Revolução Americana, SP, edusc, 2003.

25 Esses poderes políticos dos juízes são mais significativos porque lá os juízes federais são nomeados pelo chefe do Executivo com aprovação do Senado e os juízes estaduais são em boa parte eleitos diretamente pelos eleitores. O mesmo acontece em muitos outros países da América latina, que se inspiraram no modelo norte-americano.

26 Tate e Vallinder. The global expansion of judicial power, cit.

27 Michael McCann. Rights at work: pay equity reform and the politics of legal mobilization (Chicago Series in Law and Society), Chicago, Chicago University Press, 1994; íd. “How the Supreme Court matters in american politics: new institutionalist perspectives”, em Howard Gillman e Cornell Clayton. The Supreme Court in American Politics. New institutionalist interpretations, Lawrence, University Press of Kansas, 1999.

28 Em seu sentido antigo, iurisdictio, poder de dizer o direito, era contraposto a imperium, que se definia como a capacidade de dar ordens, o conjunto de poderes que têm seu princípio na detenção de uma fração de poder público, o poder de dispor da força pública. No exercício da jurisdição, o pretor, embora autoridade pública apenas examinava se o pedido era admissível (jurisdictio), aprovando que o cidadão iniciasse uma ação, que seria julgada por um árbitro ou um júri (judicatio). Daí resultou a oposição entre a jurisdição como simples declaração do direito, feita por um magistrado (pretor) ou por um tribunal de cidadãos, e a os atos de execução desse direito declarado, que eram inicialmente atribuídos aos próprios cidadãos e, mais tarde, passaram a ser garantidos pela autoridade pública. Essa distinção entre declaração do direito e atos de execução foi associada à separação dos poderes do Estado contemporâneo, em que ao Judiciário caberia apenas a primeira, cabendo a segunda ser promovida pelo Estado (execuções penais) ou pelos próprios credores (portadores de um título judicial válido que declare uma obrigação certa e determinada contra um devedor), com a ajuda da força pública, quando necessária a execução forçada da dívida (cfr. Verbetes “jurisdição” e “imperium” em Cornu, Gerard (coord.). Vocabulaire Juridiquem, 8.ª edição atualizada, Paris, puf, 2007; e Babot, Agnès; Agnès Boucaud-Maître y Philippe Delaigue. Dictionnaire D´histoire du droit et des institutions publiques, Paris, Ellipses, 2002.

29 Ver as comparações propostas por Carlo Guarnieri e Patrizia Pederzoli. La puissance de juger, Paris, Michalon, 1996; e por Eugenio Raúl Zaffaroni. Estructuras Judiciales, Buenos Aires, ediar, 1994.

30 Para informações sobre o Judiciário em democracias constitucionais contemporâneas, ver Jhon Bell. Judiciaries within Europe. A comparative review, Cambridge, Cambridge University Press, 2006; e Gilles Charbonnier. Panorama des systèmes judiciaires dans l’Union Européenne, Bruxelas, Bruylant, 2008.

31 Ver Peter Cane. Administrative tribunals and adjudication, Oxford ant Portland, Hart Publishing, 2009; Fromont, Michel. Droit Administratif des Etats Européens, Paris, puf, 2006.